Pensar é preciso
A ilusão
Um governo para os
pobres, mais do que um incômodo político para o conservadorismo, era um mau
exemplo, uma ameaça inadmissível para a fortaleza do poder real
Gosto de imaginar a História como uma
velha e pachorrenta senhora que tem o que nenhum de nós tem: tempo para pensar
nas coisas e para julgar o que aconteceu com a sabedoria — bem, com a sabedoria
das velhas senhoras. Nós vivemos atrás de um contexto maior que explique tudo
mas estamos sempre esbarrando nos limites da nossa compreensão, nos perdendo nas
paixões do momento presente. Nos falta a distância do momento. Nos falta a
virtude madura da isenção. Enfim, nos falta tudo o que a História tem de sobra.
Uma das vantagens de pensar na História
como uma pessoa é que podemos ampliar a fantasia e imaginá-la como uma
interlocutora, misteriosamente acessível para um papo.
— Vamos fazer de conta que eu viajei no
tempo e a encontrei nesta mesa de bar.
— A História não tem faz de conta, meu
filho. A História é sempre real, doa a quem doer.
— Mas a gente vive ouvindo falar de
revisões históricas...
— As revisões são a História se
repensando, não se desmentindo. O que você quer?
— Eu queria falar com a senhora sobre
o Brasil de 2016.
— Brasil, Brasil...
— PT. Lula. Impeachment.
— Ah, sim. Me lembrei agora. Faz tanto
tempo...
— O que significou tudo aquilo?
— Foi o fim de uma ilusão. Pelo menos
foi assim que eu cataloguei.
— Foi o fim da ilusão petista de mudar
o Brasil?
— Mais, mais. Foi o fim da ilusão que
qualquer governo com pretensões sociais poderia conviver, em qualquer lugar do
mundo, com os donos do dinheiro e uma plutocracia conservadora, sem que cedo ou
tarde houvesse um conflito, e uma tentativa de aniquilamento da discrepância.
Um governo para os pobres, mais do que um incômodo político para o conservadorismo
dominante, era um mau exemplo, uma ameaça inadmissível para a fortaleza do
poder real. Era preciso acabar com a ameaça e jogar sal em cima. Era isso que
estava acontecendo.
Um pouco surpreso com a eloquência da
História, pensei em perguntar qual seria o resultado do impeachment. Me
contive. Também não ousei pedir que ela consultasse seus arquivo e me dissesse
se o Eduardo Cunha seria presidente do Brasil.
Eu não queria ouvir a resposta.
Luis Fernando Veríssimo - escritor
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