Pensar é preciso
Flavio Koutzii: “Esse é o melhor Brasil que temos depois da ditadura”
“Um dos paradoxos da situação provocada pelos protestos
de rua que sacudiram o Brasil nas últimas semanas é a impressão, estimulada por
alguns setores bem identificados, de que o país estaria acabando quando, na
verdade, está começando um novo ciclo, em um novo patamar. É claro que há
problemas relativamente agudos na educação, na saúde e na segurança, mas não
podemos fazer de conta de que não existiram os grandes avanços que o país teve
nos últimos anos. Estou convencido de que esse é o melhor Brasil que nós temos
depois da ditadura”. A avaliação é de Flavio Koutzii, dirigente histórico do PT
gaúcho e nacional, que, ao mesmo tempo em que reconhece a legitimidade das
manifestações e vê nelas uma expressão de mudança qualitativa na política
brasileira, adverte para o risco de uma regressão no país que provoque o
desmonte das políticas construídas nos últimos dez anos.
Em entrevista ao Sul21, Koutzii analisa os significados políticos das
manifestações, procura situá-las num contexto histórico mais amplo e reconhece
responsabilidades do PT e do governo federal nesse quadro de crise da
representação política e partidária. Entre as responsabilidades do governo, o
ex-chefe da Casa Civil do governo Olívio Dutra assinala uma escolha que, para
ele, resultou num desastre: a incapacidade de disputar suas próprias políticas
e símbolos no espaço dominante da comunicação:
“Houve uma omissão a respeito.
Não se trata de uma falha, mas de uma escolha, uma escolha de não enfrentar os
monopólios da mídia. Isso tem a ver com o fato de que o tom, a ênfase e o
próprio código valorativo do que efetivamente se fez tiveram uma grande
diminuição de potência, porque nem o governo transformou isso em bandeiras. O
governo anunciou o que fez, é verdade. Mas isso está no meio de todos os demais
anúncios. O governo raramente disputou isso como a vitória de uma política, o
que no Brasil é considerado um pecado e daria umas cem edições da Folha de São
Paulo e umas cinco mil edições da Veja”.
Leia, a seguir, a íntegra da entrevista.
Sul21: As mobilizações e protestos de
rua que sacudiram o país nas últimas semanas constituíram um fenômeno
completamente inesperado. Qual a sua caracterização geral sobre as mesmas, se é
que já é possível fazer tal caracterização?
Flavio Koutzii: Essas mobilizações, de fato, foram
inesperadas e tiveram como elemento deflagrador reivindicações em várias
cidades relacionadas ao preço das tarifas de ônibus. Rapidamente, se agregou a
este cenário um nível importante de repressão policial que deu mais combustão a
essa energia inicial. Pelo contexto brasileiro, o que aconteceu foi
surpreendente, mas do ponto de vista do cenário mundial, ao qual não há nenhum
abuso em recorrer para estabelecer alguns parâmetros e referências, torna-se um
pouco menos surpreendente. Se olhamos para a Primavera Árabe, as manifestações
nos países europeus completamente avassalados pela política de destruição dos
direitos mínimos de cidadania, de trabalho e de garantias sociais, temos a
percepção inicial, e talvez até mais do que isso, do poder imenso das chamadas
redes sociais. Não era exatamente uma novidade tecnológica, mas houve certa
desatenção para o fato de que se tratava de uma novidade social de grande
potência.
Merece destaque, no caso brasileiro, a
sintonia e a sincronia com que os processos se deram rapidamente nas principais
cidades do país de forma multitudinária e quase instantânea. É um fenômeno mais
ou menos análogo, considerando as respectivas diferenças de contexto, ao que
vinha acontecendo em outros países, para derrubar ditaduras ou para denunciar o
caráter destrutivo da hegemonia neoliberal no terreno da economia e da
aniquilação de direitos sociais. Ainda no caso brasileiro, se considerarmos a
visão dos “secadores” do desenvolvimento econômico do país, para tomar uma
expressão futebolística, temos a impressão de que esse é o pior Brasil que já
tivemos. Eu estou absolutamente convencido de que esse é o melhor Brasil que
nós temos depois da ditadura. Há um pensamento desagregador muito comum hoje
entre os cronistas da mídia e editorialistas ao abordar a realidade política,
econômica e social brasileira. Esse pensamento teve uma pequena repercussão,
mas teve, nas pautas levadas adiante nas manifestações para tentar criar a
impressão que esse é o pior Brasil da história. Um dos símbolos desse tipo de
pensamento foi a famosa capa da Veja com o tomate, que foi uma grande
tergiversação.
Sul21: Se esse é o melhor Brasil que nós temos depois da ditadura, e há
fartos indicadores para apoiar essa afirmação, como entender esses protestos de
rua?
FK: Afirmar isso não retira, é claro, a
legitimidade das manifestações. Um dos paradoxos da situação atual é essa
impressão, estimulada por alguns, de que o país estaria acabando quando, na
verdade, está começando um novo ciclo, em um novo patamar. É claro que há
problemas relativamente agudos na educação, na saúde e na segurança, mas não
podemos fazer de conta de que não existiram os grandes avanços que o país teve
nos últimos anos. Mas não resta dúvida de que essas manifestações representam
uma ruptura qualitativa em relação a qualquer outro processo que o Brasil já
viveu. Isso é o mínimo que se pode dizer. Eu venho de uma geração que
atravessou as primeiras lutas que ainda foram possíveis de fazer, de forma
direta e massiva, depois do golpe de 64 e da instauração da ditadura. O ápice
da luta neste período inicial pós-golpe foi a passeata dos 100 mil, em 1968, no
Rio de Janeiro. Foi uma coisa extraordinária, mas durante o período de
acumulação para chegar até essa passeata, atividades com 100 pessoas, em sua
maioria compostas por jovens também, eram consideradas um grande sucesso.
Estou falando de 50 anos atrás, mas
isso ajuda a perceber, até pela experiência vivida, que o gigantismo do
processo atual (com manifestações simultâneas que chegaram a reunir 800 mil, um
milhão de pessoas em todo o Brasil) é um fato muito relevante. Não menos
relevante é o perfil majoritariamente jovem dessas manifestações. Além disso,
colocou-se um tema sobre o qual creio que a esquerda, e mesmo o governo
nacional, tem que se interrogar fortemente: uma situação dessa dimensão não cai
do céu, ela não pode simplesmente ser impulsionada pelas redes, senão a
tecnologia é tudo e a política é nada. Não há, obviamente, no início desse
processo nenhuma motivação conspiratória, o que não quer dizer que no decorrer
do mesmo, em virtude de sua dimensão, não tenha se colocado uma nova situação
política, uma grande mexida no tabuleiro político do país, fazendo com que
outras forças começassem a se mover.
Sul21: Que forças começaram a se mover e em que direção?
FK: Houve um movimento da direita para
tentar capturar o movimento, uma vez que, dada a sua constituição, ele é
impulsionado não só pela pluralidade de eixos, mas também por uma
espontaneidade inicial de quem participa dele. Mas não existe propriamente uma
geração espontânea do movimento e não se pode confundir potencialidade
tecnológica com motivos que têm como base expectativas sociais não efetivadas.
Volta aí o tema do paradoxo que citei anteriormente e que aparece nos debates
hoje nas redes e fora delas. Se eu, reconhecendo todas as dificuldades e
limites, afirmo os valores parciais do processo dos últimos dez anos, com Lula
e Dilma, logo vem alguém dizer: “Ah, você está dizendo então que está tudo uma
maravilha, que está tudo bem na saúde e na educação, que a segurança é
perfeita…”. É um clichê lamentável, empobrecido e simplificador, muito a gosto
do maniqueísmo.
Esta forma de discutir, que vem se
tornando comum em setores médios da população, está sempre nos trilhos do
maniqueísmo. Qualquer afirmação positiva é confrontada com tudo o que ainda
falta por fazer. E não é levado em conta o caráter concreto e positivo de tudo o
que já foi feito. Não se leva em conta, por exemplo, que o modo pelo qual a
política e a economia foram administradas nos últimos anos colocou cerca de 30
milhões nisso que vem sendo chamado, certo ou errado, de nova classe média.
Será que a aposta feita antes da crise mundial de 2008 de ampliar o mercado
interno não foi um elemento que nos permitiu enfrentar a ressaca mundial
decorrente da crise do universo financeiro que comanda cada vez mais
perversamente a economia e controla muitas sociedades? Arrancar 15 milhões de
pessoas da mais extrema pobreza é algo sem significado, de menor importância?
Cinco milhões de pessoas beneficiadas pelo Luz para Todos é um detalhe
secundário?
Poderia seguir dando outros tantos
exemplos. A política internacional, que deu autonomia e capacidade de
potencializar a posição do Brasil no cenário mundial não tem nenhuma
importância. O fato é que há uma lista de muitas realizações que é substantiva.
Poderia citar ainda o Bolsa Família, a política de quotas…Há uma discussão político-ideológica
em torno dessas políticas. Elas existem, incidem sobre a sociedade e tem um
alcance extraordinário, como é o caso do Bolsa Família. Tem o pré-sal, a
Petrobras, que está sempre na linha de tiro da direita. Esse é o Brasil. Tem
tudo o que falta, é verdade, senão as pessoas não estariam falando nisso, mas o
que falta no que falam é o reconhecimento do que já foi feito, não como um
paraíso, mas como avanços concretos e substantivos.
Sul21: Todos esses avanços e
resultados parecem ter desaparecido do debate político atual. Como isso pode
ocorrer, na sua avaliação?
FK: É como se não tivessem acontecido e
como se, juntos, não articulassem um olhar global mais auspicioso sobre a
realidade do país. O que isso tem a ver com as manifestações? Tem a ver com um
dos elementos da política do governo federal nestes anos, um elemento que é uma
escolha e é um desastre: a incapacidade de disputar suas próprias políticas e
símbolos no espaço dominante da comunicação. A realidade é que hoje o governo e
todo o campo progressista e de esquerda não tem instrumentos para enfrentar
esse problema. Pior ainda: houve uma omissão a respeito. Não se trata de uma
falha, mas de uma escolha, uma escolha de não enfrentar os monopólios e
corporações da mídia. Se juntarmos esses fios, podemos ver que isso tem a ver
com o fato de que o tom, a ênfase e o próprio código valorativo do que
efetivamente se fez teve uma grande diminuição de potência, porque nem o
governo transformou isso em bandeiras. O governo anunciou o que fez, é verdade.
Mas isso está no meio de todos os demais anúncios.
O governo raramente disputou isso como
a vitória de uma política. Consequentemente, não politizou a própria política
que usou, o que é considerado um pecado no Brasil. É claro que isso daria umas
cem edições da Folha de São Paulo e umas cinco mil edições da Veja, como se fosse
uma grande imoralidade administrativa. Quer dizer que todo mundo pode tentar
defender e usar a linguagem dos meios de comunicação atuais para o que quiser,
menos o governo? Então, o governo tem uma grande dose de responsabilidade aí.
Ocorre essa explosão crítica, nutrida em parte por problemas reais, e, por
outro lado, não tem nada, por parte de uma política governamental, que fez
coisas tão boas e tão importantes, na defesa política do que fez e na disputa
de ideias na sociedade. Essas realizações foram decisivas para a reeleição de
Lula e para a eleição da Dilma, porque incidiram na vida real das pessoas. Isso
é fantástico. O que é inaceitável é não fazer a batalha política em torno
dessas coisas alcançadas. Assim, a direita fica falando sozinha. Esse é um dos
temas que considero muito importante para fazer um diagnóstico mais amplo e
contextualizado do que está acontecendo. Se tivesse ocorrido uma disputa sobre
o que realmente foi feito, seria possível tensionar democraticamente o próprio
processo de mobilizações e protestos.
Dois ou três dias depois que as coisas
começam a acontecer já é possível perceber uma leve derrapagem de partes do
movimento que começam a apontar diretamente para o governo federal. Neste
momento entram em ação, na mídia e nas redes sociais, usinas que começam a
trabalhar, com maior ou menor sutileza, na direção da desestabilização do
governo e da presidência em particular, apostando na lógica do quanto pior,
melhor. Esses elementos todos fazem parte de um primeiro olhar sobre como essas
coisas todas se articularam. O fator surpresa foi a aparição dos protestos com
essa intensidade. O fator explicação é o que temos o dever de procurar, de
refletir sem sectarismos ou esquematismos, mas distinguindo as coisas. Esse
processo todo acabou se tornando uma espécie de condenação global do país, como
se nada tivesse acontecido e como se não estivéssemos muito bem em várias
áreas.
Sul21: E parece ter sido muito rápida essa transição de um movimento
focado na questão do preço das passagens do transporte coletivo para uma
espécie de condenação geral do governo, dos partidos, dos políticos em geral.
Qual é a parte de responsabilidade dos partidos neste processo, em especial do
PT e dos seus principais aliados? Há um razoável consenso em torno do diagnóstico
que vivemos, de fato, uma crise do sistema partidário e de representação
política. Qual é o peso dos partidos nessa crise?
FK: Essa é uma questão fundamental. Temos
vários elementos precedentes que foram alimentando um caldo de cultura e uma
atmosfera política que potencializaram a amplitude e a dimensão do que acabou
ocorrendo, e eu diria também, potencializaram a paixão e o rancor que às vezes
se misturaram indistintamente nessa atmosfera. Não tenho dúvida que o estado
maior das finanças, da grande mídia e de setores empresariais muito importantes
nunca estiveram tão bem do ponto de vista de sua atividade empresarial
capitalista. Mesmo assim, eles não suportam. Como disse o Chico Buarque certa
vez, tem uma espécie de racismo operando que faz com que não suportem o fato de
milhões de pessoas que viviam na pobreza terem melhorado de vida. Mesmo tendo
ocorrido uma ampliação espetacular do mercado interno brasileiro, que
incorporou milhões de pessoas que estavam numa situação de “pré-consumidores” –
e escolho essa palavra porque diz respeito a esses setores -, o que os ajudou a
não sucumbirem à crise de 2008, eles não suportam quem está no governo hoje. E
isso que o que estamos fazendo são políticas de moderadas reformas dentro da
sociedade capitalista.
O horizonte socialista, por mais que
me doa pessoalmente reconhecê-lo pois dediquei minha vida a esse projeto, não
está colocado. Tem gente que não gosta que se diga isso, mas acho que
precisamos chamar as coisas pelo nome. O projeto socialista colapsou e os
reformistas moderados fizeram coisas boas e interessantes para o povo
brasileiro. Mas elas não têm a ver com reformas radicais ou com perspectivas
revolucionárias. Essa é a situação e esses são os nomes das coisas que temos
diante de nós.
Essa é a moldura do debate sobre a
responsabilidade dos partidos. Nós acabamos vivenciando uma crescente
relativização de certos valores. Eu me incluo nessa responsabilidade pelo
período em que fui dirigente, pelo conjunto da própria trajetória do PT. Eu até
aceitaria essa frase que costumam jogar na nossa cara, de que todos os partidos
são iguais, com uma ressalva: são quase iguais, mas não fazem a mesma coisa.
Essa questão é fundamental. O PT, por uma série de processos em que se
envolveu, como o próprio tema do mensalão, foi erosionando dramaticamente a sua
própria autoridade moral, que lhe deu tanta potência política e foi tão vital
para seu crescimento nos primeiros vinte anos. Mas cabe uma ressalva. Nós
podemos ter ficado muito parecidos com os outros, mas a nossa ideia sobre o que
fazer do Brasil é diferente da ideia da direita. É por isso, também, que ela
nos combate. Não é só porque ela não gosta do nosso cheiro; também não gosta das
nossas ideias.
A nossa responsabilidade, falando como
petista, ao dissolver certo núcleo ético que acompanhava a vitalidade das
nossas políticas e que nos nutriu para chegarmos onde chegamos, produziu um
efeito no campo da direita. Impotente, pelo esgotamento do seu projeto
executado nos anos 90 durante o governo Fernando Henrique, ela desloca para o
centro da política o tema da ética e da moral. E nós demos muita sopa. Com os
erros e procedimentos pelos quais somos responsáveis, nem sempre exatamente
como eles dizem, nós abrimos um flanco que eles usaram para introduzir um
cavalo de troia no nosso campo, reduzindo a política ao tema da ética, quando a
política que se faz, certa ou errada é, na verdade, o centro da política. A
política é a expressão de uma disputa de poder.
A escolha de uma espécie de”
realpolitik”, ditada pela necessidade de fazer um governo de coalizão também é
um elemento inescapável neste debate. Escolha em relação à qual, diga-se de
passagem, eu não tenho nenhuma alternativa a oferecer, a não ser em um aspecto:
as coligações podem ser feitas, quando temos um peso importante ou certa
hegemonia, para garantir a hegemonia de uma determinada política, política esta
que deve ser explicitada. Se não explicitamos essa política e se essa hegemonia
se sustenta pelo padrão clássico de troca de favores, temos aí um segundo
elemento para entender a crise de autoridade.
Nós evitamos tensionar esse padrão
para preservar um amplo leque de alianças. O preço disso é o aumento da despolitização.
Nós não fizemos uma disputa enérgica e permanente sobre aquilo que efetivamente
fizemos, que tem sentido, tem a ver com desenvolvimento, com distribuição de
renda, com a melhoria da vida das pessoas. E isso também não foi feito, em
parte, para não espantar aliados. Não creio que seja muito esquerdismo defender
que a explicitação da índole dessas políticas poderia causar a perda de alguns
aliados, mas poderíamos também entusiasmar muita gente. Creio que isso ajuda a
entender a formação de um enorme buraco na política que é ocupado e disputado
agora.
Sul21: Há um debate em curso sobre a disputa desses movimentos que estão
nas ruas. Além disso, o anúncio feito pela presidenta Dilma Rousseff, propondo
um plebiscito para encaminhar a Reforma Política, tirou o Congresso da situação
de sono esplêndido na qual estava até então, trazendo-o para o centro da cena
política. E parece que o Congresso, de modo geral, não reagiu bem às propostas
de plebiscito e de um processo constituinte para fazer a Reforma Política. Na
sua avaliação, quais são as chances de o Congresso aprovar uma reforma que
dialogue com os sentimentos e opiniões que vêm das ruas?
FK:
Acho muito difícil que isso ocorra, pois aí entra em ação o sistema de defesa
da corporação. Mas é possível que eles deem alguns anéis para não perderem
todos os dedos. Isso depende também da continuação ou não dessas manifestações
massivas. Acho que o ritmo tende a diminuir, pois exige um esforço
dramaticamente duro. Outras manifestações que assistimos pelo mundo, em
realidades políticas distintas, se estenderam por meses até, período no qual
aconteceram muitas coisas. Uma das questões importantes para este futuro
próximo é acompanhar a evolução de forças interessantes que estão surgindo
nessas mobilizações e que não são forças ultraminoritárias. É possível que a
grandeza dessa experiência política faça com que certos segmentos que
participam dele busquem certa organicidade ou certa forma de permanecer. Esse é
um dos dilemas profundos de alguns movimentos em outros países, como é o caso
da Espanha. Não se isso vai acontecer aqui. No caso da Espanha, a recusa de
certa organicidade foi um pouco fatal. Quem acabou se elegendo foi a pior
direita de todas, a mais destrutiva para o povo espanhol.
Sul21: No Egito acabou acontecendo algo parecido. No final, até agora,
não houve nenhuma grande mudança na estrutura de poder e o resultado da eleição
foi a vitória da Irmandade Muçulmana…
FK: Sim,
é exatamente o que quero dizer. As mobilizações de rua foram ocorrendo, mas não
conseguiram dar um salto qualitativo com uma nova base social potencialmente
promissora. Espero que isso não se repita aqui e penso que esse tema ainda está
em aberto e vai depender de outros fatores. Neste sentido eu acho que o governo
Tarso está indo bastante bem, pois tentou rapidamente estabelecer canais de
diálogo reais e não apenas para tentar atenuar a gravidade do conflito. Tenho
um pequeno otimismo sobre a possibilidade de saírem algumas coisas
interessantes daí, como a entrada mais consistente de alguns novos
protagonistas no espaço da política, mesmo que façam um discurso contra os
políticos e os partidos. A verdade é que eles estão fazendo política o tempo
todo, e não no sentido pejorativo. Então, acho que seria precoce e mesmo
errado, do ponto de vista político, abusar de caracterizações que comecem a
construir distâncias maiores dos que as que existem neste momento, quando
talvez seja possível diminuí-las.
Sul21: Na sua avaliação, os protestos e mobilizações de rua trouxeram
algum risco de ruptura institucional para o país?
FK: Acho
que essa hipótese não pode ser descartada por quem está prestando atenção
nesses acontecimentos. Tudo isso começou a acontecer, cabe lembrar, a pouco
mais de um ano do início da campanha para as eleições presidenciais de 2014. A
dimensão dos fatos redistribuiu um pouco as peças no tabuleiro. Esse tabuleiro
já mudou, o que não quer dizer que os novos posicionamentos já estejam
cristalizados. Por isso não excluo a necessidade de seguir muito atento a
evolução desse cenário. Uma situação dessa grandiosidade traz muitas
incertezas. O certo é que em 2014 decidiremos se o país continua com as mudanças,
que podem ser graduais mas apontam na direção dos interesses do seu povo, ou se
teremos uma regressão com o desmonte do que foi construído nestes últimos dez
anos. Isso não é uma visão paranoica nem conspirativa. É uma visão do atual
tabuleiro político.
Publicado originalmente no Sul 21: http://www.sul21.com.br/jornal/2013/07/flavio-koutzii-esse-e-o-melhor-brasil-que-temos-depois-da-ditadura/
Comentários