Ato político



Nesses tempos de tanta ira e cegueira e falta de lucidez, Juremir é um dos poucos que enxerga todos os atores e os cenários atuais e possíveis para o país, sem máscaras ou excessos. Isso não é pouco e chega ser uma dádiva.


Do segundo turno a uma ideologia


Os dados estão quase lançados.
É muito provável que aconteça um segundo turno entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad. A imprensa internacional está assustada. The Economist, publicação liberal inglesa, afirma que Bolsonaro é uma ameaça para Brasil e América Latina. O francês Le Monde preocupa-se com “a inquietante ascensão da extrema-direita no Brasil”. O inglês The Guardian fala no “Trump brasileiro”, rotulado de “perigoso candidato que lidera as pesquisas”. O francês conservador Le Figaro sustenta que com Bolsonaro o “Brasil sucumbe à tentação autoritária”. Libération diz que a democracia está em perigo. É o que pensa também o norte-americano New York Times.
A história pode ser irônica.
A direita republicana brasileira ajudou a aprofundar o que sempre critica: a divisão entre nós e eles. Uniu-se com o oportunismo para derrubar Dilma Rousseff. Serviu-se de um pretexto para chegar aos fins. Semeou o ódio. Produziu Bolsonaro. O tucano Tasso Jereissatti admitiu os erros: contestar o resultado eleitoral em 2014, “votar contra princípios básicos nossos, sobretudo na economia, só para ser contra o PT” e “entrar no governo Temer”. Conclusão do ex-presidente do PSDB: “Fomos engolidos pela tentação do poder”. Fernando Henrique Cardoso publicou carta pregando união ao centro. Bastaria que todos desistissem em favor de Geraldo Alckmin.
Os outros soltaram um estrondoso “fala sério, meu”.
No segundo turno da última eleição presidencial francesa, direita republicana e esquerda se uniram em torno de Emmanuel Macron para barrar a candidata de extrema-direita Marine Le Pen, representante da xenofobia, do racismo, da homofobia e de todos os preconceitos em voga. A direita razoável brasileira terá grandeza para fazer o mesmo? FHC publicará carta pedindo votos para Haddad? Para escapar do perigo representado por Bolsonaro o espectro de centro-direita votará no PT? Bolsonaro usa o ultraliberal Paulo Guedes como isca para fisgar o mercado, que só se interessa por dinheiro. A pauta de fato de Bolsonaro é comportamental.
O que o bolsonarismo foca mesmo é no combate ao comunismo (uau!), ao politicamente correto (reação ao empoderamento de mulheres, gays, negros, índios e qualquer minoria) e às políticas sociais, consideradas como estímulo à preguiça. A essência do bolsonarismo é ideológica e comportamental. A corrupção, que deve sempre ser combatida, é apenas pretexto para expressão de algo mais enraizado e passional: o horror à alteração do modelo patriarcal e elitista de gestão do cotidiano. O bolsonarismo confunde autoridade com autoritarismo, disciplina com repressão, educação com adestramento, justiça com vingança, punição com punitivismo, agilidade com ações sumárias, moral e ética com moralismo, organização com ordem militar.
Se o Brasil praticar o iluminismo francês, votará em qualquer um contra Bolsonaro. Poderá ir de Haddad, Ciro, Marina ou Alckmin. Henrique Meirelles tem tanta chance quanto o Cabo Daciolo. Agora é que são elas. O país verá quem é quem. A imprensa internacional já viu. Entrevistei Geraldo Alckmin ontem para o Esfera Pública. Fiquei com a impressão de que entre Bolsonaro e Haddad ele fica contra o PT.
*
Bolsonarismo ideológico

O bolsonarismo é uma ideologia. O ingênuo acha que ideologia é sempre o pensamento do outro. Nunca aquilo que ele mesmo pensa. Ideologia pode ser a visão de mundo que se tem ou, como categoria de acusação, a lente consciente ou inconsciente que deforma o olhar fazendo com que “realidade” seja encoberta. Ao contrário do que muitos afirmam, a adesão a Bolsonaro não se dá principalmente pelo cansaço com a política tradicional nem por indignação contra os corruptos. O mercado namora com Bolsonaro atraído pelas promessas que o candidato faz por meio do economista ultraliberal Paulo Guedes. Para grande maioria dos bolsonaristas certamente não é isso que conta. Mas a sua concepção de mundo. Bolsonaro fascina aqueles que pensam como ele.
 Sobre o quê? Sobre os chamados temas comportamentais. Pela primeira vez possivelmente uma eleição brasileira não tem a economia como ponto central. O foco deslocou-se para os costumes. Jair Bolsonaro encarna junto com os seus admiradores uma reação contra o politicamente correto. A voz dele ecoa no imaginário do que os consideram um mito e o adoram como um profeta entoando cânticos contra o empoderamento das mulheres, o feminismo, o casamento entre pessoas do mesmo sexo e a restrição a piadas contra negros, gays, judeus, índios e minorias. Bolsonaro e seus discípulos comungam um ideal: a sociedade patriarcal dominada pelo macho branco na qual os demais aceitam um lugar subalterno e submetem-se ao humor dos dominantes.
A ideologia leva o dominado a considerar a sua dominação natural, legitimando o poder que o subjuga. Mulheres podem ser machistas ou naturalizar o machismo. Subordinados podem louvar a subordinação. A ideologia leva também o preconceituoso a tomar o seu ponto de vista discriminatório como “normal” e essencial. O que deseja o bolsonarista típico (pode existir o ocasional, por exemplo, o antipetista)? Que o homem seja o chefe da família, que gays não possam mais beijar-se em público, que o Estado não gaste dinheiro com políticas assistenciais, que índios não tenham amplas reservas de terra, que se possa tentar curar gays de sua inclinação sexual, que o modelo branco europeu de organização da vida seja dado por superior.
Jair Bolsonaro e muitos dos seus vibram juntos na homofobia, na discriminação racial em diferentes tons, em graus diversos de xenofobia, na simplificação que faz pensar no combate à violência através do armamento geral da população e na convicção que unidos poderão evitar políticas públicas de diminuição da desigualdade. A mensagem que seduz muitos desses adeptos apaixonados é esta: armados resistiremos aos bárbaros que nos cercam e os convenceremos a se conformar com o que lhes é dado.
Nem todos os bolsonaristas esposam o pacote ideológico do mestre.
Uns o seguem por falta de rumo ou por desejo de simplificação. Outros, por raiva. Uns vão a ele por homofobia. Outros, por racismo. Uns buscam nele a proteção contra o comunismo (políticas sociais). Outros, querem a defesa da sagrada propriedade privada mesmo quando ela não tem função social. Uns veem nele a possibilidade de retorno ao tempo “feliz” em que podiam chamar negro de crioulo ou negão, gay de viado, índio de preguiçoso, africano de malandro, mulher de vagabunda, judeu de ganancioso. Alguns querem tudo ao mesmo tempo. O bolsonarismo é uma ideologia requentada que naturaliza o ódio como visão do paraíso.

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