Ato político
Ato político trás uma reflexão importante e um alerta urgente, assinada pelo respeitável Jeferson Miola...
O PT na contramarcha da liquefação
política
O PT não pode se converter num tipo institucional do gênero
Forrest Gump e fazer de contas que nada passou ou então que o tempo se
encarregará de fazer as coisas passarem. A reiteração dos vínculos do PT com
sua originalidade é a principal garantia de que o Partido não se transforme num
simples e mais um partido da ordem.
Jeferson Miola
Se o “espírito” era “moderno”, o era enquanto
estava decidido que a realidade se emancipasse da “mão morta” de sua própria
história ... e isso só poderia ser logrado derretendo os sólidos [quer dizer,
dissolvendo tudo aquilo que persiste no tempo e que é indiferente à sua
passagem e imune ao seu escoamento]. Essa intenção requeria, por sua vez, a
“profanação do sagrado”: a desautorização e a negação do passado e,
primordialmente, da “tradição” - isto é, o sedimento e o resíduo do passado no
presente. Portanto, requeria, da mesma forma, a destruição da armadura
protetora forjada pelas convicções e lealdades que permitiam aos sólidos
resistirem à “liquefação”.... ...
... ...
O que foi quebrado já não pode ser colado.
Abandonem toda a esperança de unidade - tanto futura como passada - vocês, os
que ingressam ao mundo da modernidade fluida.
Zygmunt Bauman, em “Modernidade Líquida”.
1. O julgamento do STF marca o fim de uma etapa da vida do PT no ano
em que cumpre 33 anos de existência - apesar de não ter sido julgada a
“instituição PT”.
A condenação dos Indivíduos que, no exercício de funções
dirigentes no PT cometeram equívocos indeléveis, foi capsiosamente convertida
em condenação do PT. Os efeitos políticos do julgamento sobre o patrimônio
ético, programático e simbólico do PT foram, portanto, profundos. E cobrarão um
elevado tributo por um prolongado período de tempo.
2. É sabido que a direita não desperdiçou a oportunidade de narrá-lo
como o “mais importante julgamento nos 121 anos da história do STF na
República”. Soube incrustá-lo com perspicácia no calendário das eleições
municipais de 2012 – ainda que tenham sido frustrados nesse intento, como
evidencia o desempenho eleitoral do PT, especialmente na cidade de São Paulo.
O padrão de unidade orgânica da direita na condução desse processo
foi impecável. Por um lado, compactou o campo jurídico reacionário: o STF e o
Ministério Público foram, nessa perspectiva, eficientes “células partidárias”
no Poder Judiciário. O Supremo, aquela instância “Inatacável, Inalcançável e
Divina”, conferiu uma falsa materialidade jurídica para a torpeza política.
Em outra frente, os segmentos da mídia hegemônica e monopólica,
naturalmente concorrenciais entre si, desta feita se uniram na editorialização
do processo e na narrativa subliminar contra o Partido.
A prioridade foi implicar centralmente o PT, mais além dos
Indivíduos efetivamente implicados. Os Ministros do STF e a mídia foram os
principais atores políticos e juízes do processo. Fizeram militância obssessiva
pela condenação do PT como instituição. O ativismo frenético de determinados
ministros do Supremo, do Procurador-Geral da República e da mídia hegemônica
substitiu a necessidade de maior proeminência dos partidos da oposição
conservadora, que desempenharam um papel coadjuvante no combate ao PT e ao
governo. Desse modo, simularam ser um julgamento “técnico”, livre de
politização.
***
Nas circunstâncias análogas da história do Brasil em que houve uma
confluência tão harmoniosa dos interesses das distintas estruturas reacionárias
de Poder – no Judiciário, no Parlamento e na mídia hegemônica - as resultantes
foram instabilidade e fratura institucional: histerismo contra Getúlio Vargas,
auto-golpe de Jânio Quadros, golpe militar de 1964, etc.
A conspiração no marco da institucionalidade, com aparência de
normalidade democrática, é a modalidade contemporânea do que alguns autores
chamam de “neogolpismo” [1] levado a cabo contra governos progressistas. Os
“golpes institucionais” em Honduras e Paraguai, bem como as tentativas
renitentes de desestabilização na Argentina, Bolívia e Equador são evidências
deste fenômeno na região.
3. A aplicação da “inovadora” – ou jurisprudencial, no vocabulário
jurídico – tese adotada pelo Supremo para condenar os réus, foi considerada
equivocada por um dos principais autores da teoria do “domínio do fato”, o
professor e jurista alemão Claus Roxin [2].
Outros autores consideraram-no um “julgamento de exceção” [3],
pois atropelou os princípios do devido processo legal e subverteu a ordem
jurídica democrática moderna advinda com as revoluções oitocentistas.
É certo, por isso, que não se tratou de um julgamento isento,
imparcial e atento à técnica jurídica. Tivesse sido, por outro lado, um
julgamento realizado à margem das Leis e da Constituição, não se estaria ante
um processo judicial, e sim ante um regime totalitário. Não é esse, entretanto,
o presente caso, ainda que seja nítido o intento conspirativo intrínseco a ele.
4. Por mais que se confirmem as inúmeras aberrações do julgamento, a
realidade é que ele somente ocorreu e foi semioticamente espetacularizado
porque existiu causa material concreta a motivar sua instalação: alguns
ex-dirigentes do PT aplicaram os mesmos dispositivos do sistema ilegal de
financiamento de campanhas adotado pelos partidos tradicionais. Considerando
tais práticas, não há garantias de que os réus não seriam condenados mesmo num
julgamento técnico e isento.
A partir desse fato gerador, porém, uma série de extrapolações
foram feitas, e a mais estapafúrdia delas é o alegado “pagamento de mesada”
regular a parlamentares durante o governo Lula – inclusive a parlamentares
aliados e a integrantes do próprio PT.
5. Determinados setores partidários, em especial os que pertencem à
tendência política interna dos implicados, involuntariamente acabam reforçando
a absurda idéia de que o PT foi condenado, e não exclusivamente os Indivíduos.
Quando reivindicam solidariedade institucional do PT [cotização para pagamento
de multas, por exemplo] como se o PT tivesse sido condenado, nada mais fazem
que referendar e reforçar, no debate público, a imputação criminosa da direita
contra o PT.
O conjunto do tecido partidário, mesmo sem nenhum conhecimento
sobre as práticas “heterodoxas” empregadas, ainda assim foi respeitoso e
solidário com os ex-dirigentes no curso desse julgamento thermidoriano. E
continua sendo, pois não reivindica a aplicação das normas estatutárias
relativas a casos como o presente.
6. Concluído o julgamento no Supremo, porém, o PT não pode seguir
refém do agendamento imposto pela mídia e reverberado nos parlamentos, no
debate público e na vida cotidiana da sociedade. O julgamento do chamado
“mensalão” está praticamente concluído – restam apenas prazos para recursos e
para os trâmites finais. Mas os graves efeitos ocasionados ao PT são, desde
logo, definitivos e irreversíveis, e sobre eles se deve intervir.
É momento, pois, de se refletir com uma sincera e desarmada
autocrítica a respeito dos acontecimentos, de se entender as causas profundas
da adoção de práticas degeneradas, e de se projetar políticas que recuperem a
identidade original do PT no imaginário popular.
A realidade presente, por mais dolorosa que possa ser, oferece
oportunidades importantes para se entender os acontecimentos que acometeram o
Partido.
7. No plano interno, da organização partidária, as sucessivas
mudanças empreendidas nos últimos anos com o espírito de “flexibilizar” o
funcionamento partidário – do financiamento à filiação – se converteram,
potencialmente, em vetores para o abalo moral e ético.
A mediação é um componente vital da atividade política.
Entretanto, em muitas vezes uma visão excessivamente pragmática prepondera
sobre opções políticas que podem ser mais trabalhosas no curto prazo, mas que
asseguram uma coerência estratégica.
Paradoxalmente, os petistas que foram julgados pereceram devido às
próprias visões e critérios de construção partidária que definiram para o PT na
condição de histórica maioria interna. Os acontecimentos demonstraram,
finalmente, que a secundarização dos valores originais do PT é fonte de
importantes problemas – mas jamais solução.
8. Abrandando a visão socialista para tornar-se “palatável” e
“moderno”, o PT abdicou da radicalidade política e se afeiçoou ao jogo político
conservador e tradicional. Um dos reflexos disso foi a “parlamentarização da
política”, ou seja, o estabelecimento da arena parlamentar como âmbito
principalíssimo da disputa hegemônica e de garantia de governabilidade. A
governabilidade congressual é considerada, nesse sentido, uma fatalidade
incontornável.
Alianças exóticas e sem identidade programática substituem a coerência
e a nitidez ideológica, deseducam o povo desencantando-o em relação à política,
que acaba por criminalizá-la. A relativa secundarização dos espaços públicos de
deliberação e de controle social por vezes é compensada pelas lógicas
parlamentares de sustentação governamental.
No governo central, o PT tem explorado com timidez uma potente
capacidade de mobilização da sua base social para defender e sustentar as
mudanças e transformações e para contrarrestar a pressão por vezes chantagista
do Parlamento. Priorizando as negociações inter-partidárias e as relações
parlamentares, sempre se fica vulnerável às práticas do toma-lá-dá-cá.
9. O adiamento na implementação de determinadas reformas durante os
10 anos no governo nacional, cobra um importante preço político. São reformas
que, se não forem disputadas para que ganhem efetividade, comprometerão a
construção de um estatuto democrático e plural para o país.
O Brasil contemporâneo reclama a realização das reformas
tributária, política e do Judiciário. Além disso, necessita de mudanças que
assegurem a democratização do acesso à produção e à difusão da informação e da
comunicação pública.
De todas as mudanças que são urgentes, a reforma política e a
democratização dos meios de comunicação são as de primeiro nível de prioridade.
10. Sem reforma política com financiamento público de campanhas, com
listas partidárias e com o fim das coligações proporcionais, a porta da
corrupção eleitoral seguirá escancarada. Sem uma verdadeira reforma política os
governos continuarão dependentes de alianças esdrúxulas, sem coerência
programática e estruturadas na base do loteamento do aparelho de Estado.
O atual sistema político e eleitoral favorece o poder econômico e
distorce a representação pública. É um campo fecundo para a mercantilização da
política e para a deturpação da democracia. E justamente esse sistema político
e eleitoral está na raiz do chamado “mensalão”.
11. De outra parte, a preservação de um padrão permissivo do Estado em
relação aos oligopólios midiáticos é fator que interdita a pluralidade e a
democracia cultural. Os meios de comunicação no país pertencem a não mais que a
um punhado de famílias e pastores de igreja. Essa realidade é um escândalo para
um país laico, de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, 200 milhões de
habitantes e portador de uma generosa pluralidade cultural.
Em alguns países europeus, o problema da regulação da propriedade
dos meios de comunicação há muito foi superado. Lá, além de restrições muito
efetivas ao exercício de monopólios e ao domínio de múltiplas mídias pelos
mesmos conglomerados, o Estado é proprietário de emissoras públicas de rádio e
televisão, para garantir a pluralidade de expressão das sociedades nacionais.
A democratização e a regulação da propriedade dos meios de
comunicação [e não do conteúdo publicado] segundo o interesse público [de toda
a sociedade, e não somente dos donos dos veículos] é um componente vital para a
democracia, para a liberdade e para a pluralidade. Os monopólios verificados no
Brasil não subsistiriam nas mais avançadas democracias do mundo.
12. No curso de 2013, nos 33 anos de vida do PT, se realizará o PED
[Processo de Eleições Diretas], e se desenrolarão os debates partidários com
vistas ao 5º Congresso Nacional do Partido agendado para fevereiro de 2014.
Além dessas complexas lógicas internas, se deve prever para 2013 o
aprofundamento dos ferozes enfrentamentos políticos e ideológicos que têm como
horizonte a sucessão presidencial em 2014. Será um ano, pois, de continuidade e
aprofundamento da “guerra anti-popular prolongada” iniciada em 2003 depois da
assunção de Lula no governo central do Brasil.
O PT deve se planejar estrategicamente para fazer frente à natural
exposição pública que terá ao longo desse ano. Deverá aproveitá-la para
politizar o diálogo com o conjunto da sociedade, em especial com os setores que
se referenciam nas políticas e práticas partidárias, assim como com os
segmentos que acompanham com atenção e interesse os caminhos tomados pelo
Partido.
13. O êxito na construção do PT nesses 33 anos, que o guindou
precocemente à Presidência da República, está em grande medida associado à
capacidade de elaboração e persuação programática, de encantamento com o
ideário de “um outro mundo possível” e de implementação de revolucionárias
formas de fazer política e de gerir a coisa pública com ética e participação
popular.
Esse patrimônio do PT - de confiança e esperança - é muito maior
que o maior dos erros que eventualmente alguns militantes possam cometer
individualmente. E é a base a partir da qual se pode lançar iniciativas que
visem recuperar a imagem do Partido no imaginário social. Para isso, é
necessário que se faça uma humilde autocrítica acerca dos acontecimentos que
originaram o julgamento no STF, admitindo os equívocos cometidos por alguns ex-dirigentes
partidários.
Nenhum evento desfavorável será capaz de subtrair a autoridade do
PT para liderar uma disputa teórica e cultural na sociedade em torno de valores
republicanos, democráticos e éticos. Somente com uma postura autocrítica o PT
poderá assumir uma conduta ofensiva no debate público acerca da necessidade de
mudanças no atual sistema político e eleitoral que impede a dignidade e a
moralidade na política.
14. Ainda não se produziu um balanço exaustivo a respeito dos 10 anos
dos governos do PT no Brasil. Mas, mesmo contabilizadas as contradições e
insuficiências dos governos Lula e Dilma, visíveis no padrão de acumulação
capitalista, a realidade é que os governos petistas realizam o empreendimento
mais generoso e civilizatório da história do país.
O ciclo do PT no governo, entretanto, não será eterno, ainda que
que possa ser longevo. Por isso, é fundamental se refletir a respeito da
institucionalização de mecanismos e práticas consagradores de uma nova cultura
de gestão do Estado, para garantir avanços obtidos e para preservar as
conquistas democrático-populares.
Na ausência de salvaguardas institucionais para a preservação
desse patrimônio, num eventual revés eleitoral se poderá sentir uma
desacumulação na capacidade de luta para a retomada do poder e para a
acumulação de forças de um projeto transformador.
A estrutura de dominação, lapidada em 500 anos de opressão,
exclusão e concentração da riqueza, provavelmente resistiria a décadas de
governos petistas. A situação na Europa é exemplar: o Estado de bem-estar
social, com seus 60 anos de edificação, tem sido a principal vítima na crise.
Os poderosos – financistas à frente – preservam seus interesses às custas da destruição
dos direitos de cidadania da maioria do povo.
O próximo período, que será de ferrenhas disputas com a oposição
conservadora, permitirá ao PT difundir as conquistas dos 10 anos na condução do
país. Será ocasião para conectar os avanços havidos com a necessidade de se
reformar o Estado para incrustrar nele os compromissos com os direitos, com a
democracia participativa, com a igualdade, com os ideais republicanos e com a
justiça social.
Mereceria ser avaliado o cenário de convocação de uma Assembléia
Nacional Constituinte específica e exclusiva, desde que constituída numa
correlação de forças favoráveis aos interesses democrático-populares, desde que
possa refletir a conjuntura de avanço do campo progressista e de esquerda.
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O PT não pode se converter num tipo institucional do gênero
Forrest Gump e fazer de contas que nada passou ou então que o tempo se
encarregará de fazer as coisas passarem.
Na vida real - no dia-a-dia das escolas, das repartições públicas,
das empresas, dos lares -, as dificuldades enfrentadas pelo PT têm uma
audiência atenta. Por razões óbvias: o PT lidera o governo nacional, e é a mais
auspiciosa invenção da esquerda brasileira e a mais renovada tradição
democrática e socialista do Brasil.
Desprezar essa realidade não é o melhor critério político e, menos
ainda, expressão de sensatez. O PT tem condições de assumir a iniciativa
política na conjuntura, em especial buscando politizar o debate sobre questões
essenciais para o avanço republicano e democrático. De outra maneira, será
agendado pela oposição conservadora e seus braços institucionais no judiciário
e na mídia hegemônica, ficando numa posição defensiva e respondendo no terreno
deles.
A reiteração dos vínculos do PT com sua originalidade é o
principal antídoto contra a liquefação política no contexto da “modernidade
líquida”. E, também, garantia de que o Partido não se transforme num simples e
mais um partido da ordem – risco alertado por Florestan Fernandes na
eventualidade do PT abdicar dos valores que constituem e que justificam sua
origem.
NOTAS
[1] Ver artigo “Estados Unidos, Venezuela e Paraguai”, de autoria
de Samuel Pinheiro Guimarães Neto, publicado na Agência Carta Maior, e
entrevista ao Jornal Folha de São Paulo em 29/06/2012 do mesmo autor:
“Diplomata vê onda golpista na América do Sul”.
[2] Entrevista do jurista Claus Roxin à Folha de São Paulo, em
11/11/2012 –“Participação no comando de esquema tem de ser provada”.
[3] Entrevista de Wanderley Guilherme dos Santos ao Valor
Econônico de 21/09/2012 – “Mensalão será um julgamento de exceção”.
Jeferson Miola foi coordenador-executivo do 5º
Fórum Social Mundial.
Fonte: Agência Carta Maior
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