Ato político


 



"Ato político" de hoje é abrilhantado por esta brilhante reflexão de Vinícius Wu, Chefe de Gabinete do governador Tarso Genro.

Salários, Transparência e República.


Vinícius Wu*
Publicado em www.cartamaior.com.br
A lei 12.527 de 2001, já popularmente conhecida como “lei da transparência”, é um marco em nossa longa caminhada até a consolidação de uma autêntica República em nosso país. Ela surge num contexto internacional marcado por grandes debates sobre dados abertos e acesso à informação no mundo hiperconectado do inicio do século XXI. Trata-se de uma lei que integra a nova geração de instrumentos normativos voltados ao aumento da transparência e do controle público sobre o Estado, tornados possíveis pelos avanços recentes no campo das Tecnologias da Informação e Comunicação. Aliás, nossa Lei, fruto da ação concreta do Governo Federal nessa área, já é considerada uma das melhores do mundo.
Entretanto, parte dos grandes meios de comunicação tem optado por transformar uma lei com alto potencial de radicalização da democracia e afirmação de nossos preceitos constitucionais em uma ação pretensamente punitiva da política e dos gestores públicos no Brasil. Busca-se, assim, reduzir todo o debate acerca dos efeitos da Lei sobre a República e a organização do Estado brasileiro a simples divulgação de salários no âmbito da administração publica. Não que essa seja uma discussão sem importância, pelo contrario. Mas a radicalidade da Lei nos permite ir muito além disso. Estamos diante da oportunidade de um profundo debate sobre os limites de nossa incompleta formação republicana e os desafios de nossa democracia no novo século.
A tradição patrimonialista, que orientou a formação do Estado brasileiro, cunhou em nossas Instituições uma forte inclinação à apropriação privada do espaço público, cristalizando uma ampla rede de interesses e negociações de favores, que terminaram por solapar as pretensões modernizadoras de nossa incipiente tradição republicano-positivista que disputou a condução do país à época da transição da Monarquia à Republica no Brasil.
Os impasses estruturais que ensejaram o ocaso do regime monárquico brasileiro foram mitigados em torno de um pacto entre as elites do final do século XIX, que nos permitiram transitar do II Reinado à Primeira República mantendo-se intactas as bases patrimonialistas, clientelistas e oligárquicas em torno das quais se estruturou o Estado brasileiro, em especial, após a instalação da Corte Portuguesa em território nacional.
Para decretar pelo alto a “República” nossa elite política não hesitou em sacrificar princípios republicanos elementares. E assim transitaram dos governos militares de Deodoro e Floriano Peixoto ao pacto oligárquico, consolidado a partir de Campos Sales, sem qualquer constrangimento. Nossa República nasceu sob o signo do pragmatismo e da instrumentalização de princípios e ideologias. Não por acaso, monarquistas convictos transformaram-se, em poucos dias, em fervorosos republicanos de ocasião, empenhados em manter intactas as bases da dominação oligárquica. Ao final, prevaleceu a imposição da ordem para os de baixo e a repartição dos frutos do progresso para os de cima.
Não seria necessário nenhum grande esforço intelectual para concluirmos, ainda, que durante praticamente todo o século XX assistimos à persistente reação das elites econômicas do país a qualquer reforma estrutural que nos permitisse uma mínima abertura na arquitetura política do Estado brasileiro forjada nas primeiras décadas da República. Foram bloqueadas, inclusive através da força, até mesmo algumas tímidas tentativas de republicanização do país esboçadas por Getúlio, Juscelino e Jango.
O processo Constituinte de 1988 representou a abertura de uma nova possibilidade para a rediscussão das bases sobre as quais se estrutura nossa República. Esse ainda é um processo em curso, na qual os setores populares lograram significativos êxitos na esteira dos movimentos de redemocratização das décadas de 70 e 80. Mas, ainda, temos inúmeros desafios e muitos deles se relacionam com os pressupostos contidos na Lei da Transparência.
Pois então, radicalizemos essa perspectiva e nos concentremos em alcançar a raiz dessas questões. Veremos, dessa forma, que a informação sobre salários, vencimentos e ganhos rentistas no Brasil pode, sim, suscitar uma ampla reflexão sobre justiça social e concentração de renda no Brasil.
Então, façamos um chamado aos grandes meios de comunicação e formadores de opinião publicada: Radicalizemos a perspectiva republicana da Lei da Transparência! Vamos abrir informações sobre dados de todos setores que, de alguma forma, recebem direta ou indiretamente recursos públicos em seus vencimentos. Bastaria, para isso, uma simples alteração do Artigo 2​° da Lei.
Abram-se, portanto, informações sobre ganhos e bônus recebidos por executivos das grandes empresas que recebem isenções fiscais e subvenções públicas. Tornemos públicos os ganhos obtidos pelas empresas beneficiadas por verbas públicas e dos controladores de empresas de capital misto. Façamos com que os bancos submetam-se ao controle público da mesma forma como estamos cobrando dos gestores que determinam as políticas macro-economicas do país.
Essa não é, de forma alguma, uma agenda radical, esquerdista ou coisa que o valha. O Presidente dos EUA, Barack Obama, sugeriu algo parecido, recentemente, no rastro da crise de 2008. Essa é uma agenda que nosso país deveria ter cumprido no início do século XX, na gênese da República brasileira.
E lutemos para que não sejam distorcidos os termos do debate. Nos últimos dias, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul – comprometido com o pleno cumprimento da Lei – foi alvo de ataques de alguns setores por sugerir que na implantação da Lei deve-se ter cautela para não violar a privacidade fiscal de cada servidor e não suscitar medidas judiciais regressivas futuramente.
Longe de retroagir, devemos avançar decididamente no acesso às informações públicas, inclusive aquelas sobre controle privado. Vejamos como andam as concessões de serviços públicos, comparemos lucros e investimentos na melhoria de serviços. Façamos valer a Lei para todos e tudo aquilo que envolver recursos públicos. Reproduzamos em nosso país experiências como a do “Where Does My Money Go?”, que abre informações sobre a destinação dos recursos públicos na Inglaterra. Em São Paulo, jovens do “Para onde vai o meu dinheiro” já fazem esforços semelhantes para abrir dados e informações públicas. Temos outras experiências em várias partes do mundo que podem ser aplicadas aqui com apoio do Poder Público.
Nosso país mudou profundamente nos últimos anos. Novos sujeitos emergem na cena pública do país e é preciso repensar a organização do Estado brasileiro. A reforma necessária de nossas instituições democráticas é um imperativo da continuidade do amplo processo de democratização da sociedade brasileira ensejado pela Constituição de 1988.
Realizemos, portanto, um debate sério a respeito do caráter transformador da Lei da Transparência e seus desdobramentos sobre todas as esferas de poder e exercício de funções públicas em nosso país. Dessa forma, poderemos promover o encontro virtuoso entre uma Lei exemplar e a necessária realização efetiva de nossa incompleta – e tão adiada – transição republicana.
*Chefe de Gabinete do Governador do RS e Coordenador do Gabinete Digital

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