Ato político
Bolsonaro,
por mais abominável que seja, vai muito além da questão do indivíduo. Na política nunca se discute condutas pessoais apenas, e sim
projetos políticos com alcance coletivo.
Ele
representa uma parcela da sociedade que enxerga a
democracia e as liberdades democráticas como a única e principal causa dos
problemas do país.
Ou seja, que
nosso problema não foi a brutal quebra do estado democrático de direito, com a
derrubada de uma presidenta eleita pelo voto popular sem ter cometido crime
algum, causando uma gravíssima crise econômica que fez ressuscitar males
antigos do Brasil, como o desemprego e a fome.
Que, ao invés
disso, nosso problema seria o fato das mulheres terem deixado de ser submissas
aos homens; os negros terem deixado as senzalas; os homossexuais terem saído do
armário; o estado ser laico e há “lejos” ter sido separado da religião; os pobres
terem assegurado o direito constitucional de acesso a uma vida melhor por meio da ação governamental e entrado no orçamento do governo através de programas sociais e políticas públicas.
Enfim, que
nosso problema seria o reconhecimento das diferenças próprio de um regime
democrático, e não as desigualdades e o autoritarismo históricos do Brasil.
O problema não é Jair Bolsonaro.
O problema são os que se dispõem a votar nele e que constituem, segundo o mais
recente Datafolha, um terço dos eleitores (no segundo turno). Ou, mais
corretamente, o problema é o sinal enviado por essa parcela do eleitorado.
Por que o problema não é
Bolsonaro? Porque, conforme ensinam os especialistas em sociologia e política,
a liquidação da democracia não se dá mais, hoje em dia, pelos tanques e
canhões, mas pela erosão lenta, gradual e segura promovida por quem chega ao poder,
de farda ou de terno, pelo voto popular.
Venezuela e Nicarágua são os dois
exemplos do momento na América Latina. Há outros até na Europa ultracivilizada.
Parece altamente improvável,
primeiro, que Bolsonaro se eleja, conforme mostraram as simulações de segundo
turno no Datafolha. E, se ganhar, é mais improvável ainda que consiga levar
adiante o trabalho de demolição da democracia.
Não digo que não queira. É,
visivelmente, um autoritário empedernido. O problema é que não terá a
colaboração da maioria do Congresso, da maioria dos governadores, da maioria
dos partidos e, acima de tudo, enfrentará uma sociedade civil razoavelmente
articulada.
Dividida, é verdade, mas
naturalmente pouco inclinada a ceder os espaços de liberdade e de participação
que foi conquistando. Democracia é oxigênio para a sociedade civil.
Mesmo os militares, salvo alguns
alucinados, não têm em tese incentivo para estrangular a democracia. O fantasma
do comunismo, usado como pretexto para o golpe de 1964, já foi exorcizado.
As elites, que conspiram contra a
democracia sempre que sentem seus interesses ameaçados, não têm com que se
preocupar. Até o PT deixou de ser aquele partido cuja vitória, em 1989, levaria
800 mil empresários a deixar o país, na famosa frase de Mario Amato, então presidente
da Fiesp.
Lula acabou ganhando 13 anos
depois e, em seu governo, os empresários nunca ganharam tanto dinheiro, segundo
o próprio Lula diria mil e uma vezes. Os 13 anos e algo de governos petistas
não tocaram em um só fio de cabelo das elites.
O problema, do meu ponto de vista
de militante pela democracia, é que ela, nesses seus 33 anos de vigência no
Brasil, não conseguiu convencer um terço do eleitorado de que é o pior dos
regimes, fora todos os outros, para citar Winston Churchill.
Há uma parcela nada desprezível
de brasileiros que prefere o pior dos regimes, uma ditadura, resgatada, pela
primeira vez nas oito eleições democráticas, das catacumbas a que havia sido
felizmente condenada.
Posso até ver algo de positivo
nesse ressurgimento: é melhor que os viúvos e viúvas da ditadura trabalhem à
luz do dia, no processo eleitoral, do que conspirem nas sombras, como fizeram
nos anos 60, até derrubar o governo e impor 21 anos de trevas.
Mas é importante que os que
rejeitam o autoritarismo que Bolsonaro simboliza tomem consciência de que a
eleição de 2018 é uma demonstração de que a democracia está capengando. Uma
muleta —rejeitar o autoritarismo— não vai bastar. É preciso restabelecer a
confiança no modelo democrático, sob pena de que, em algum próximo assalto, ele
vá a nocaute.
Clóvis
Rossi
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