Ato político
Penso que a democracia é um bem por si só e as decisões das urnas devem ser sempre acatadas e respeitadas. Acatadas e respeitadas sim, o que não significa concordância completa ou unanimidade, uma vez que fazer oposição faz parte do jogo e é algo sempre legítimo e necessário, desde que dentro das regras do jogo democrático, claro. Ou seja, para o derrotado nas urnas não vale fazer beicinho nem apelar para golpes baixos ou coisa pior! Não deveria, pois o que ocorreu durante a última corrida presidencial e após mais uma derrota dos tucanos na disputa eleitoral desse ano é um exemplo bem claro e cristalino de que os maus perdedores estão aí e são capazes tanto de apostar na trapaça quanto de usar ou recomendar o uso da força para mudar as regras ou o resultado, ou pelo menos na tentativa de constranger os vencedores e induzi-los a governar utilizando a agenda e as fórmulas rejeitadas pela maioria.
Democracia
sempre é bom, porém a democracia vive um paradoxo permanente e insuperável,
conforme ensina Wanderlei Guilherme dos Santos, tendo em vista que esse é o “único
sistema que reconhece como legítimas demandas que sabe que não pode atender”. Ainda
segundo o grande intelectual brasileiro, outro paradoxo é que somente na democracia
é livre e aceitável utilizar práticas que visam enfraquecer, solapar ou mesmo derrubar
a democracia. Para dar um exemplo mais concreto, enquanto na democracia os
ditadores bradam nas tribunas dos parlamentos ou são iluminados pelos holofotes
dos grandes veículos de comunicação, os democratas que reclamam democracia num
regime autoritário são ou seriam torturados, mandados ao exílio ou friamente
assassinados em nome da “ordem”.
O fato é que
numa democracia ainda tão jovem e tênue como a nossa é mais comum que a razão perca
para a emoção, que a complexidade das coisas ceda lugar para as simplificações,
que o bom senso seja espancado pelo senso comum e que na busca apressada e
irrefletida por uma vida melhor, se eleja projetos políticos que representam o
pior ou pelo menos o oposto da intenção do eleitor (a) que através do poder do
voto escolhe as formas, conteúdos e rumos da administração pública durante
quatro anos. Ou como diz a canção de Belchior: “não conte vitória antes do tempo
não/nem leve flores para a cova do inimigo/as lágrimas dos jovens são fortes
como um segredo/ e podem fazer renascer o mal antigo”.
É nesse
contexto que se insere a escrita pertinente, convidativa e eloquente de Jorge Branco, uma das figuras mais queridas e respitadas da “segunda etapa” da gestão do sempre governador Tarso
Genro.
Pretendo discutir aqui o significado do que é um
“governo incomum”, defendendo a posição que ele deve caracterizar-se por duas
qualidades, fundamentalmente: primeiro, não aceitar o juízo do “senso comum”,
quando isso significa abdicar de princípios; e, segundo, não abandonar o
sentido estratégico do programa apresentado à sociedade, nas eleições que deram
legitimidade ao mandato.
De fato, a democracia pode ser compreendida como um
sistema político criado pelas pessoas para compartilhar uma vida em comum. E para
que esse sistema dê resultados, não basta ter um conjunto de regras, estruturas
de poder e procedimentos, mas é imprescindível adotar valores, atitudes e
condutas democráticas, tanto pelos governantes quanto pelos governados. No Rio
Grande do Sul, a despeito do desprestígio que a política experimenta pela
combinação da degradação do sistema partidário, do ataque sistemático da mídia
e da valorização de um senso comum simplificado, os últimos quatro anos
produziram uma síntese bastante incomum. Houve um amplo e plural conjunto de
ações que aprofundou mecanismos de participação em todos os níveis, produziu
desenvolvimento em todas as áreas e buscou equidade e inclusão com o
protagonismo e a incorporação das diferentes forças da sociedade na cena
pública e nas instâncias de decisão da administração.
Talvez a grande aptidão de um homem político (no
sentido de alguém que se envolve nos temas mais complexos do bem comum), tenha
sido abrir mão de atos fenomênicos para constituir um governo transversal e
resolutivo em todas as etapas de produção, execução e controle de políticas
públicas. As atitudes democráticas e modos de comportamento do Governo Tarso
Genro são baseados na adesão aos valores da dignidade da pessoa humana, no
desenvolvimento com igualdade, no debate público e no diálogo, na liberdade e
na justiça. Isto exige maior complexidade. Não é o simples, o comum, que um
projeto radicalmente democrático propõe.
Estas complexidades estão traduzidas em diferentes
ações do Governo: no sistema de participação popular, transparência e controle
social, na relação federativa republicana com os municípios, na adoção de uma
política econômica de fortalecimento de um estado público e de enfrentamento à
crise com crescimento, na recuperação das funções públicas em áreas cruciais
como saúde, educação, segurança, agricultura, ciência e tecnologia.
Incomum — e parece que o futuro imediato poderá
tornar explícito — é romper o ciclo do fiscalismo ortodoxo e criar uma
estratégia de financiamento do estado que não o imobilize. Ao contrário,
viabilize investimentos, base dos índices de crescimento econômico que o Rio
Grande apresenta.
Este Governo, incomum, dialogou com a sociedade de
todos os modos. Criou diferentes instâncias de participação, controle social,
transparência e prestação de contas, com a maior consulta orçamentária do
mundo. Onde 1,3 milhão de pessoas definiram onde investir os recursos do
Estado. As ruas pediram, o Governo Tarso Genro fez. O Rio Grande do Sul foi o
primeiro estado a adotar o Passe Livre Estudantil, garantindo condições para a
juventude de baixa renda ir à escola. As Interiorizações chegaram a mais de 200
municípios de todas as regiões. A relação com os municípios rompeu a tradição
clientelista brasileira, tratando a todos com isonomia e parceria, não fazendo
distinção de partido político, região, de tamanho ou de porte econômico.
A capacidade administrativa e a valorização do
servidor e do serviço público se traduziram na recuperação de todas as
carreiras e na difusão do caráter público do estado. Só como exemplo, os
reajustes concedidos ao quadro geral do Estado no Governo atual chegaram a
162,88%, mais de cinco vezes que o anterior.
Isso foi possível porque o crescimento industrial
gaúcho, em 2013, foi de 7,4%, mais do que o dobro dos estados mais
industrializados do país. O Rio Grande do Sul cresceu 6,3% em 2013 e produziu a
maior safra agrícola da história: 30 milhões de toneladas de grãos!
Não faltam dados e números que comprovam um
conjunto de resultados vibrantes, superiores e inéditos em todas as áreas.
Ainda assim, compreendemos que, aos governos democráticos, se impõem superar os
desafios também no campo simbólico.
O resultado eleitoral não permitiu a manutenção
deste modelo democrático e desenvolvimentista de governo. Talvez tenha faltado a
simplificação dos símbolos para representar as ações diferentes do comum que
este Governo realizou. Reconhecemos que estes avanços foram insuficientes para
conquistar a reeleição do atual governo. As causas da derrota são várias e
apresentá-las demandariam um novo artigo. Porém, é inegável que algumas
decisões polêmicas e, do nosso ponto de vista acertadas, nos trouxeram
desgastes. Cito duas medidas adotadas que contrariaram os desejos da
tradicional classe média gaúcha: a valorização do salário mínimo regional e a
orientação para que a Brigada Militar evitasse o confronto direto com os
manifestantes de junho de 2013. Temos orgulho do que isso representou para os
nossos partidos e imaginávamos que uma parcela da sociedade poderia ter outra
interpretação. É mais uma comprovação de que o Governo Tarso Genro foi incomum
ao não agir privilegiando os interesses eleitorais.
Os gregos chamavam “politikos” homens que se
interessavam e participavam ativamente em todos os problemas da “polis”. Um
governo deste porte e deste nível só poderia ser conduzido por alguém com
profunda aptidão, interesse pela coisa pública e pelo bem comum. Esta “polis’,
sua diversidade e pluralidade, estava presente no interior do Governo através
da democracia participativa e através dos partidos que compuseram sua base de
sustentação. Este arranjo formou uma equipe de governo coesa e com programa
fora do comum.
E o reconhecimento desta condição, exige
compromisso com a causa democrática. Quem deprecia a política, contribui para a
degradação do Estado e a demolição de uma estrutura de ações e valores
penosamente erguida pelo autêntico “demos”, o cidadão democrático.
Jorge Branco é Secretário de Estado do
Gabinete dos Prefeitos e Relações Federativas do Rio Grande do Sul.
Publicado originalmente no site Sul21: http://www.sul21.com.br/jornal/a-complexidade-do-incomum-e-aptidao-democratica-por-jorge-branco/
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