Ato político
Muitas mentes de esquerda, embora sinceras
e generosas, preferem surfar nas ondas do imediatismo, brigar por coisas
pequenas ou andar com a cabeça no mundo da lua, ao invés de enxergar o que se
passa concretamente, em termos de luta política, no mundo real.
A luta continua e pede cada vez mais
lucidez e precisão de movimentos. Do contrário, uma nova onda ultraconservadora
pode varrer nossas melhores esperanças e os muitos esforços que permitiram
alguns passos rumo a um mundo melhor e mais justo...
É este o alerta e o chamado que Tarso Genro vem
fazendo a todos nós...
A esquerda
brasileira deveria se unir em torno de um amplo movimento político e social em
defesa de um programa mínimo de resistência democrática ao impasse que a Europa
neoliberal está apresentando ao mundo: novos marcos regulatórios para
democratizar o acesso à comunicação e garantir o direito à livre circulação da
opinião; reforma política e reforma do pacto federativo, principalmente
tributário, para reduzir as desigualdades sociais e regionais. Se não
avançarmos nesta agenda de resistência, os avanços que tivemos poderão ser
revertidos. O artigo é de Tarso Genro.
O grande movimento que deverá ser
feito pelos oligopólios financeiros globais que tutelam as políticas dos países
em crise será, processualmente, transferir os ônus da “recuperação” aos países pobres
e aos chamados “emergentes”. Não somente através de um desequilíbrio ainda
maior, no intercâmbio comercial, mas também desencadeando ondas especulativas
sobre as economias que não consigam colocar sob controle sua dívida pública.
Estes oligopólios vão se esmerar – a
partir da insegurança generalizada já em curso – em provocar crises de
governabilidade instigando, a partir delas, mais uma onda de privatizações,
cujos recursos se “esfumarão” rapidamente, como ocorreu aqui no Brasil na era
FHC. Ao mesmo tempo irão financiar e incentivar governos tecnocráticos,
“choques” de gestão e mais destruição das funções públicas do Estado, como já
está ocorrendo em Portugal, na Grécia e na Espanha.
O impasse político gerado pela crise
reergueu a Alemanha à condição de potência política de primeira grandeza e
ainda não demonstrou todo o seu potencial destrutivo, nem na Europa nem na
América Latina. No Brasil, porém, a centro-direita já manifestou que “aceita” o
desafio de representar a “saída” desejada pelos credores da dívida pública
global. O candidato Aécio Neves colocou na sua agenda a defesa da era FHC,
inclusive para sustentar novas privatizações, sinceridade que visa, não só
provocar a formação de um bloco neoliberal e conservador, no seu entorno, mas
também oferecer o Brasil como território disponível para assimilar aquela
transferência da crise.
Trata-se, na Europa, de uma situação
aparentemente sem saída, pois as classes trabalhadoras dos países mais
atingidos, os setores médios, as empresas endividadas – premidos por uma
situação que ameaça o financiamento estatal e os direitos sociais e do
“Welfare”- nem conseguem maiorias eleitorais para formar governos de oposição à
dogmática neoliberal, nem conseguem constituir um bloco social de caráter
contestatório, capaz de por em risco o atual regime do capital. Ou seja: no
enfrentamento da crise, nem reforma neo-socialdemocrata, nem revolução social
novo tipo, até agora.
Como esta situação de bloqueio às
conquistas da socialdemocracia europeia vai interferir na democracia política,
com consequências em todo o mundo, ainda não se sabe. Proponho-me, aqui, a
levantar algumas hipóteses, para contribuir com o debate sobre a nossa questão
democrática, no interior da esquerda que defende a necessidade de governar
dentro da ordem democrática e que isso, não só é válido, mas é um “front”
elementar para bloquear os avanços da pior direita, que pode levar o mundo a
uma nova ordem neofascista.
Entendo que o fato político mais
marcante deste período é a subjugação da França pela Alemanha, quebrando as
esperanças de um vasto contingente popular de esquerda e de centro-esquerda –
algo que vai de Hollande a Mélenchon – que esperava por parte do governo
Hollande um processo restaurativo dos direitos e benefícios que vinham sendo
sucateados pelo governo Sarkozi, que levou este à derrota eleitoral. Algo de
bem significativo -em termos político-eleitorais – apresentou-se naquele
cenário, com um crescimento eleitoral expressivo, à direita à esquerda da
socialdemocracia tradicional, já demonstrando a emergência de inconformismo
radicalizado com os partidos da ordem que se renderam à Alemanha.
Entendo que o presidente Hollande
pretendia, por convicção e necessidade política, restaurar o pacto
socialdemocrata, esquecendo que ele fora erguido sob pilares sem fundo, o que
frustrou as expectativas sobre o seu governo. Nem foram encaminhadas medidas
alternativas de longo curso, para organizar um novo modelo de bem-estar que,
pelo menos, repartisse os sacrifícios necessários para sair da crise. Sair da
crise dentro do regime do capital, diga-se de passagem, pois ninguém com força
política real na França estava defendendo, por exemplo, uma nova onda de
nacionalizações ou a estatização dos bancos, com ocorreu na era Mitterrand.
Aqui reside, na minha opinião, a
questão-chave. O que devemos nos perguntar é se, moldada a União Europeia tal
qual foi moldada, Hollande poderia fazer reformas “pela esquerda” sem romper
com União. Ou, ainda, sem usar “medidas de exceção” no terreno econômico (como
aumentar o déficit público, exigir financiamento para os governos e empresas,
não para os bancos privados), para proteger especialmente as pequenas e médias
empresas, os empregos, bem como distribuir a proteção social mínima, necessária
em momentos agudos de desmantelamento social, como está ocorrendo nos
principais países do euro.
O que Hollande não fez a União
Europeia fez, pois o que se observou nas saídas engendradas para a crise – por
parte das autoridades da União Europeia – foi precisamente a declaração de uma
emergência política, com um “estado de exceção” não declarado, para a tomada de
decisões. E isso foi feito a partir de um “constitucionalismo de urgência”, no
qual as regras gerais da União foram subjugadas por decisões
intergovernamentais, bancadas pelo Banco Central Europeu.
Em especial estas medidas foram
orientadas pela política nacional alemã, pois, de um só golpe, as medidas de
austeridade (de caráter “excepcional”) sequestraram a soberania política dos
países em crise e interferiram duramente nos seus orçamentos: “os perdedores,
até o momento, neste processo, são os parlamentos, tanto os nacionais, como o
Parlamento Europeu.” (Carlos Closa, “El Estado da Unión Europea”, El fracaso de
la austeridad, Fundación Alternativas, 2012, pg.24). Resultado: o sequestro da
política, que esvaziou o sr. Hollande, foi capitalizado na ação política alemã,
sob o comando da sra. Merkell.
Em síntese: a “exceção”, com o nome
de “intergovernamentalismo” já começou, comandada pela direita alemã, sem que
sejam consideradas as consequências para o projeto democrático europeu e os
seus efeitos destrutivos sobre a juventude, os idosos, os aposentados, os
trabalhadores do setor público, os precários e intermitentes, os imigrantes e
os desempregados. O que farão os cidadãos europeus, quando descobrirem que não
adianta mudar governos? Eis a pergunta recentemente lançada pelo professor
Boaventura Souza Santos, em artigo memorável.
Sugiro, como agenda para debate, que
o impasse europeu poderá desdobrar-se em três possibilidades: 1. as reformas de
austeridade são implantadas e forma-se a famosa sociedade dos três terços, como
vinha sendo encaminhado aqui no Brasil, pela saudosa aliança tucano-pefelista
(um terço incluído e feliz, um terço que come mais ou menos e não se educa e o
outro terço nos guetos sociais das periferia, tratados predominantemente pela
Polícia); 2. ou as reformas de austeridade se desdobrarão por muito tempo,
comandadas por governos tecnocráticos semi-fascistas, com sustentação nas
mídias e fortes repressões seletivas contra os imigrantes e miseráveis, com o
apoio envergonhado das classes médias (nenhum dos blocos em confronto, nesta
hipótese, tem força para impor-se); 3. ou processa-se um novo episódio da
revolução social europeia, que se arrasta desde a Comuna de Paris,
reinventando-se ali algo como um novo pacto “socialista-social-democrata” -um
novo contrato social europeu – para enfrentar a direita alemã (com seus
tentáculos tecnocráticos e políticos em todos os países europeus) cuja pior
face já vem crescendo no interior da própria Alemanha: o neonazismo. Um bloco
que suponha que preservação da democracia só ocorrerá com o sequestro, desta
feita, da economia pela política.
Isso tem muito a ver conosco, que a
duros custos estamos remando contra a maré: criando empregos, reestruturado o
setor público, contratando servidores, investindo incomparavelmente mais em
inovação, ciência e tecnologia, fortalecendo o mercado interno ao incluir no
consumo milhões de famílias. Mesmo conciliando com o domínio pleno do capital
financeiro sobre a economia global – o que inclusive Cuba vem tentando fazer e
é impedida pelo bloqueio político e econômico dos Estados Unidos – o Brasil
constitui uma ameaça mundial às saídas ofertadas pela dogmática neoliberal,
porque mostra que as opções no terreno da política podem fazer frente à visão
de que “não existem alternativas.”
É visível, porém, que um certo tipo
de desenvolvimento que desafia e se contrapõe às leis de bronze do capital
financeiro pode perdurar, com o mesmo bloco de forças que lhe dão sustentação,
pelo tempo do cumprimento das tarefas que impulsionaram a sua formação. E que
nos próximos cinco anos, certamente, nosso modelo atingirá o apogeu e a
sociedade brasileira não será “inteiramente outra”, mas terá uma estrutura de
classes e novos sujeitos sociais e políticos novos.
Milhões de pessoas estarão no mundo
da política, dos negócios, dos movimentos sociais, na intelectualidade
acadêmica, à frente das técnicas de indústria e da inteligência, indiferentes à
memória política do processo de mudanças que o país sofreu. A partir daí os
desafios serão outros, mais complexos e difíceis de resolver dentro do sistema
político atual, com a fragmentação federativa ainda mais exposta e com um
sistema tributário que funcionará de forma mais arcaica do que nos dias de
hoje.
O difícil sistema de alianças que
trouxe o Brasil até hoje dá sinais de cansaço, não porque os políticos são
vilões ou corrompidos, até porque a taxa de vilania e corrupção, em cada época,
é mais ou menos a mesma. Ela adquire é tinturas diferentes, desperta interesse
ou alimenta indiferença na grande mídia, segundo seus interesses conjunturais
(onde estão as cobranças para o julgamento do mensalão mineiro?). Os processos
de corrupção no Estado, é elementar, são dependentes das formas pelas quais se
realiza a acumulação de capital e como esta reflete inclusive no financiamento
das mídias, com as suas regras “morais” mais, ou menos rígidas. Na era do
capitalismo financeiro global os multimilionários esquemas de corrupção se
transladaram das relações da burguesia industrial com Estado, para as relações
diretas da burguesia financeira com o Estado.
O sistema de alianças dá sinais de
cansaço, porque as mudanças no sistema tributário, a fragmentação federativa e
a necessidade da reforma política, despertam reações diferentes nos distintos
grupos de classes e nas diferentes regiões do país. Esta fadiga dos metais
imobiliza as bases parlamentares, proporcionando que grupos de parlamentares
troquem de posições em cada tema, sem nexo com as suas bancadas e com os seus
compromissos de fidelidade ao governo ou à plataforma oposicionista.
Enquanto na Europa o tecido político
dominante cumpre o seu papel de transmissor do programa do Banco Central
Europeu, no Brasil este mesmo tecido fragmenta-se porque não mais corresponde
aos desafios políticos que os partidos devem enfrentar, em nome das suas bases
sociais e regionais: enfrentá-los para o país completar seu ciclo de mudanças,
capazes de nos integrar no mundo, no polo de resistência a um neoliberalismo
agônico, mas, por isso mesmo, mais capaz de radicalizar os ataques à
democracia, para destruir as conquistas históricas do conjunto das classes
trabalhadoras no século passado.
Creio que a esquerda brasileira –
parlamentar ou extra-parlamentar – socialista, comunista, socialdemocrata, ou
simplesmente republicano-democrática – deveria se unir em torno de um amplo
movimento político e social para preparar um calendário de lutas, com um
programa mínimo muito simples, de resistência democrática ao impasse que a
Europa neoliberal está apresentando ao mundo: novos marcos regulatórios para
democratizar o acesso à comunicação e garantir o direito à livre circulação da
opinião; reforma política, no mínimo para acabar com o financiamento privado
nas eleições e valorizar os partidos através da votação em lista; reforma do
pacto federativo, principalmente tributário, para reduzir drasticamente as
desigualdades sociais e regionais.
Estou tentado a pensar que se não
conseguirmos avançar, nos anos imediatos, nesta agenda democrática de
resistência, os avanços que tivemos até agora poderão ser revertidos, porque
sabemos muito bem: o nosso centro do espectro político não é majoritariamente
programático, mas vincula-se a um complexo de conveniências, que não raro lhe
aproximam da pior direita, tanto neoliberal, como autoritária.
(*) Governador do
Estado do Rio Grande do Sul.
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