Ato político



Não se trata de ser saudosista ou contrário ao progresso. Trata-se, isso sim, de chamar as coisas pelo nome e perceber as novas faces de uma moeda antiga que é a desumanização ou a captura do humano pelas máquinas ou ferramentas tecnológicas.

No mundo desumano que construímos, a criatura passou a dominar o criador. Não exatamente por culpa da tecnologia, bem ao contrário, mas por conta da velha sina do homem de ser lobo do homem, como ensina uma antiga e sempre atual máxima filosófica.

Eis a questão levantada pelo escrito de Juremir Machado da Silva que reproduzo abaixo...


Ken Loach e a uberprecarização do trabalho

Novo filme do cineasta desnuda ideologia tecnicista


Quando eu era correspondente de jornal em Paris, cobri vários festivais de cinema: Cannes, Veneza e Berlim. Num deles, assisti a um filme de Ken Loach: “Terra e liberdade”. Em seguida, participei da entrevista coletiva com o cineasta. Na época, eu era jovem e ainda estava impactado pela queda do Muro de Berlim poucos anos antes. Achei Loach social demais, excessivamente marxista até, defensor de teses. Lembro-me de que José Carlos Avelar, decano dos críticos brasileiros sempre presente naqueles eventos, ficou uma arara comigo. Tinha razão.

Com o passar dos anos, não deixei de ver a maioria dos filmes de Loach. O envelhecimento me faz admirar cada vez mais esse diretor que não se deixa agarrar por modismos e resiste à ideologia tecnicista, que nos vende a ideia da “uberização” do mundo como libertação de alguma coisa. Fui ver no domingo “Você não estava aqui”, último libelo de Ken Loach contra as mentiras da tecnologia da libertação. Sem muito spoiler dá para dizer que o filme trata do desespero de um homem transformado pelo desemprego em “empreendedor”. No discurso, o negócio é dele. Na prática, sem qualquer proteção trabalhista, deve correr atrás de metas 14 horas por dia, acossado por condições terríveis impostas pela franquia. A vida familiar do sujeito vira pó em pouquíssimo tempo.

Ken Loach faz como o sociólogo francês Dominique Wolton: denuncia a ideológica tecnicista, o deslumbramento com novidades tecnológicas, às quais se atribuem virtudes emancipatórias absurdas e impossíveis. Em lugar de flexibilização, “uberprecarização” da vida. O capitalismo não precisa mais nem mesmo fornecer os meios de produção. Só recolhe a sua parte dos ganhos. As ferramentas agora pertencem ao “parceiro”. O endividamento começa com a compra ou aluguel, por exemplo, do veículo que servirá de instrumento de trabalho. Condições são impostas. O cliente deve pagar menos e ser impressionado com efeitos de modernidade. O aplicativo ou franqueador nunca perde. Quem paga essa conta é o executor do trabalho, iludido, coagido ou sem escolha.

A escravidão hipermoderna atende pelo nome de compartilhamento. Quase sempre onde tem “co” tem alguém marchando. Os aplicativos aplicaram, com a devida redundância, a mentira de que não trabalhavam com transporte e convenceram muita gente. Inventou-se a expressão fake “carona compartilhada” para um serviço lucrativo de transporte de passageiros. Táxi sem limitação de licenças. Como todo mundo, volta e meia, uso aplicativos. Só não me sinto mais moderno do que ninguém por isso. Nem me constranjo ao levantar a mão e parar um táxi. Depois de ver o filme de Ken Loach, porém, foi doloroso voltar para casa de Uber. “Você não estava aqui” é o filme a ser visto pelos vira-latas tecnológicos que não se importam em dar dinheiro para multinacionais, em chamar isso de futuro e em fazer discursos sobre flexibilização.

Exagero? Um pouco. O filme de Ken Loach, não. É de um realismo cruel. Uma crônica sobre a destruição pela tecnologia de duras conquistas trabalhistas. Resta esperar que a tecnologia se desenvolva tanto a ponto de deixar o capitalismo sem o seu objeto: a escassez.


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