Ato político
Juremir Machado da Silva sempre pratica o jornalismo verdadeiro: responsável e respeitável.
Juremir Machado da Silva mais que oferecer respostas corretas, sempre faz as perguntas exatas.
Narrativas e
verossimilhança
Qual destas narrativas é mais
verossímil: a do impeachment de Dilma Rousseff como golpe ou de que os indícios
mostram ser Lula o verdadeiro dono do tríplex do Guarujá? Dilma foi derrubada
por causa das tais pedaladas, que, embora utilizadas por outros presidentes,
nunca tiraram ninguém do poder. As pedaladas não eram corrupção, mas manobras
contábeis para que bancos públicos adiantassem dinheiro ao governo, que
restituía. Enquanto esse pretexto avançava, o PMDB concebeu um plano de governo
chamado “uma ponte para o futuro”, destinado a encantar o mercado e parte da
mídia. Apesar de denunciado por crimes que lhe valeriam mais de 300 anos de condenação,
Eduardo Cunha foi mantido na presidência da Câmara até consumar o impeachment.
Feito isso, foi afastado. O mesmo
STF que tirou Cunha recuaria em relação ao tucano Aécio Neves. Deposta Dilma,
os que batiam panela silenciaram mesmo quando Michel Temer foi acusado de
corrupção com provas robustas. A mídia tornou-se menos severa. A Câmara dos
Deputados, a mesma que guilhotinou Dilma, salvou duas vezes a cabeça de Temer,
que continuou pagando pelos bons serviços e fazendo as reformas dos sonhos do tal
mercado. Parte do ministério de Temer foi para a cadeia. Outra parte, mesmo
atolada, ficou. Para Temer se concedeu um regime especial: governar o país
primeiro, talvez ir para a cadeia depois. Não há pressa. A justiça pode
esperar.
O país também. É como se alguém
deixasse o invasor acusado ou suspeito de muitos crimes, tomando conta da casa,
enquanto viaja, para que ela não fique abandonada e à mercê de ladrões.
A história continua. É um enredo
complexo, confuso, contraditório. O tucano Eduardo Azeredo foi condenado em
segunda instância como pai dos mensalões. Entrou com embargos. A justiça
mineira sentou em cima. Não pode o STF ou o CNJ pedir coerência e aceleração?
Enquanto isso, o processo de Lula voou. A Lava Jato focou nele com
força-tarefa. O MPF denunciou uma coisa – uso de dinheiro de contratos da
Petrobras com a OAS para dar pixulecos a Lula –, Moro condenou por outra e
admitiu não haver relação entre os contratos e o tríplex. Para muitos
especialistas isso deveria tirar Moro da ação por deixar de ser o juiz natural
do processo. O TRF-4 aumentou a sentença de Lula voltando ao teor da denúncia
feita pelo MPF. Pode isso, Arnaldo?
O presidente da Associação dos
Magistrados do Amazonas, juiz Cássio Borges, sustenta que Lula não poderia ser
condenado por corrupção passiva, pois não era servidor público quando teria
recebido a vantagem indevida, nem por lavagem de dinheiro, pois a aquisição do
apartamento não teria sido provada. Segundo ele, Lula deveria ser absolvido por
insuficiência de provas. Os indícios, porém, permitem pensar que o apartamento
era para Lula. Alguém duvida realmente disso? A questão continua sendo a prova.
Parece certos pênaltis. Um juiz dá, outro não. Teorias estrangeiras foram
invocadas para validar a decisão. Saímos da crença na verdade para a certeza do
verossímil: parece que é. Então é. Cada um escolhe a narrativa que lhe convém.
Lula irá para cadeia por provas
indiretas. Aécio Neves continuará senador com provas robustas. Como achar tudo
isso coerente? Eu acredito nos dois relatos: foi golpe e o apartamento era do
Lula. Em qual dois casos há mais indícios com valor de prova? É só escolher.
*
Ficção comparativa
Eu não me
convenci das provas que condenaram Lula. Mas me convenci dos indícios. Quero
propor uma provocação comparativa nada original, mas ainda inquietante e talvez
pertinente: o que diriam os petistas se o tríplex do Guarujá fosse digamos para
o Aécio Neves? Aceitariam os indícios como prova? Reclamariam da condenação de
Sérgio Moro e da ratificação do TRF-4? Acusariam o judiciário de golpismo e de
manipulação? Aceitariam a lógica e a teoria do domínio do fato como
dispositivos para desvendar crimes complexos em que a prova material é muito
difícil? Defenderiam a tese de que em crime de ocultação de patrimônio não pode
haver atestado de propriedade ou coisa assim?
Claro que se pode propor o
exercício também para os antipetistas: se o acusado fosse Aécio Neves eles
manteriam o discurso que fazem em relação a Lula? Seriam mais indulgentes?
Teriam mais dúvidas? Lembrariam o famoso “in dubio pro reo”. Os fatos têm
mostrado que os críticos da corrupção no petismo ficaram menos ativos em tempos
de corrupção no governo Temer. No dia em que Lula foi condenado pelo TRF-4
pediu-se o arquivamento de um inquérito contra José Serra. Há sempre razões
jurídicas para essas coisas. Em proporções diferentes.
Petistas ponderam: o primeiro
condenado à prisão é logo o que veio do povo. Pelas mesmas razões e com os
mesmos elementos aceitariam a veredicto se o condenado viesse da elite? O antipetista
odeia a lógica dos “nós contra eles”, atribuída aos petistas, e propõe eliminar
essa separação a partir dos seus termos: o “nós” valendo para “eles”. Petistas
costumam ser combativos. Eram os mestres da diabolização dos adversários. Agora
sofrem a concorrência do MBL e de outros que tais. Aécio Neves já era.
Troquemos o nome. O que diriam os petistas se o tríplex do Guarujá fosse para
Fernando Henrique Cardoso?
Façamos a inversão: o que diriam
os inimigos do petismo se o tríplex fosse para FHC? Exigiriam ato de ofício
para caracterizar o crime e condenar? Estamos fadados a ver o mundo pela lente
do nosso interesse partidário, ideológico, político? Não é possível um olhar
independente, universal, livre da distorção pelo comprometimento. Eu acredito que
é possível. Sou ingênuo. Positivista. Por que poderia? Minha resposta é
patética: porque sim. Se não é possível por que direita e esquerda cobram
isenção de jornalistas e de juízes? Encontrei um petista num bar. Tivemos uma
rápida conversa. Assim:
– Espero que os desembargadores
julguem com isenção – ele disse.
– Eu também. A isenção é
fundamental na justiça e no jornalismo.
– Isenção não existe. É mito –
ele falou.
Caí fora. Há pessoas que
conseguem se distanciar. Surgiu até um termo para forçar ao engajamento e à
perda da independência: “isentão”. Em certos casos se deve tomar partido mesmo:
contra o preconceito em todas as suas formas: racismo, machismo, homofobia;
contra a pedofilia, etc. Volto à minha ficção comparativa: o que diriam os
petistas, com os indícios disponíveis, se o tríplex do Guarujá fosse para
Michel Temer? Condenariam com prova indireta?
*
O que é mais verossímil? O que é
verdadeiro?
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