Uma voz no fim do túnel...


Texto de Boaventura de Sousa Santos, publicado na Visão em 12 de Março de 2009.


São tanto mais intrigantes quanto ocorrem sobretudo em sociedades onde supostamente a democracia está mais consolidada e onde, por isso, a concorrência de ideias e de ideologias se esperaria mais livre e intensa. Por exemplo, nos últimos trinta anos vigorou o consenso de que o Estado é o problema, e o mercado, a solução; que a actividade económica é tanto mais eficiente quanto mais desregulada; que os mercados livres e globais são sempre de preferir ao proteccionismo; que nacionalizar é anátema, e privatizar e liberalizar é a norma.


Mais intrigante é a facilidade com que, de um momento para o outro, se muda o conteúdo do consenso e se passa do domínio de uma ideia ao de outra totalmente oposta. Nos últimos meses assistimos a uma dessas mudanças. De repente, o Estado voltou a ser a solução, e o mercado, o problema; a globalização foi posta em causa; a nacionalização de importantes unidades económicas, de anátema passou a ser a salvação. Mais intrigante ainda é o facto de serem as mesmas pessoas e instituições a defenderem hoje o contrário do que defendiam ontem, e de aparentemente o fazerem sem a mínima consciência de contradição. Isto é tão verdade a respeito dos principais conselheiros económicos do Presidente Obama, como a respeito do Presidente da Comissão da União Europeia ou dos actuais governantes dos países europeus. E parece ser irrelevante a suspeita de que, sendo assim, estamos perante uma mera mudança de táctica, e não perante uma mudança de filosofia política e económica, a mudança que seria necessária para enfrentar com êxito a crise.


Ao longo destes anos, houve vozes dissonantes. O consenso que vigorou no Norte global esteve longe de vigorar no Sul global. Mas a dissensão ou não foi ouvida ou foi punida. É sabido, por exemplo, que desde 2001 o Fórum Social Mundial (FSM) tem vindo a fazer uma crítica sistemática ao consenso dominante, na altura simbolizado pelo Fórum Económico Mundial (FEM). A perplexidade com que lemos o último relatório do FEM e verificamos alguma convergência com o diagnóstico feito pelo FSM faz-nos pensar que, ou o FSM teve razão cedo de mais, ou o FEM tem razão tarde de mais. A verdade é que, mais uma vez, o consenso é traiçoeiro. Pode haver alguma convergência entre o FEM e o FSM quanto ao diagnóstico, mas certamente não quanto à terapêutica. Para o FEM e, portanto, para o novo consenso dominante, rapidamente instalado, é crucial que a crise seja definida como crise do neo-liberalismo, e não como crise do capitalismo, ou seja, como crise de um certo tipo de capitalismo, e não como crise de um modelo de desenvolvimento social que, nos seus fundamentos, gera crises regulares, o empobrecimento da maioria das populações dele dependentes e a destruição do meio ambiente. É igualmente importante que as soluções sejam da iniciativa das elites políticas e económicas, tenham um carácter tecno-burocrático, e não político, e sobretudo que os cidadãos sejam afastados de qualquer participação efectiva nas decisões que os afectam e se resignem a "partilhar o sacrifício" que cabe a todos, tanto aos detentores de grandes fortunas como aos desempregados ou reformados com a pensão mínima.


A terapêutica proposta pelo FSM, e por tantos milhões de pessoas cuja voz continuará a não ser ouvida, impõe que a solução da crise seja política e civilizacional, e não confiada aos que, tendo produzido a crise, estão apostados em continuar a beneficiar da falsa solução que para ela propõem. O Estado deverá certamente ser parte da solução, mas só depois de profundamente democratizado e livre dos lóbis e da corrupção que hoje o controlam. Urge uma revolução cidadã que, assente numa sábia combinação entre democracia representativa e democracia participativa, permita criar mecanismos efectivos de controlo democrático, tanto da política como da economia. É necessária uma nova ordem global solidária que crie condições para uma redução sustentável das emissões de carbono até 2016, data em que, segundo os estudos da ONU, o aquecimento global, ao ritmo actual, será irreversível e se transformará numa ameaça para a espécie humana. A existência da Organização Mundial de Comércio é incompatível com essa nova ordem. É necessário que a luta pela igualdade entre países e no interior de cada país seja finalmente uma prioridade absoluta. Para isso, é necessário que o mercado volte a ser servo, já que como senhor se revelou terrível.

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