Ato político


Para muitos esquerda e direita deixaram de existir há muito tempo. Para mim, esquerda e direita continuam a existir e seguirão vivas por muito tempo, quiçá, por todo o tempo que existir homens e mulheres sobre a terra.
O que contesto e não engulo é o conceito clássico de esquerda e direita, aquele que defende ou propugna pela esquerda a estatização completa e pela direita o domínio absoluto e indiscutível do "deus" mercado. Penso que existe vida, saídas e muito mais coisas entre tais conceitos arcaicos e cristalizados do que a vã filosofia ou pensamento político possam imaginar!
O mundo mudou e está em permanente mudança, para o bem ou para o mal. Desta forma, o conceito e o conflito entre esquerda e direita precisa ser visto no contexto e na configuração atual, e não meramente repetindo jargões ou invocando velhas fórmulas do passado que não nos servem mais ou nunca serviram. Até porque a política, o desenrolar da dinâmica econômica e da organização da vida social não podem nem nunca puderam ser reduzidos a um grito de ordem ou a mera aritmética ou geometria. 
Esquerda e direita existem e precisam ser vistos e entendidos no tempo, no espaço atual, além de considerar as peculiaridades da esfera local, num mundo globalidado, sim senhor, mas que segue rico e ávido da vida produzida localmente, inclusive no aspecto político e ideológico.
O escrito de Emir Sader, por óbvio, não se limita a nenhuma fronteira geográfica, possui um caráter ou alcance universal em relação ao tema que aborda. No entanto, como ele cita os desafios da esquerda frente ao poder ainda hegemônico do neoliberalismo (que em termos políticos nada mais é que a radicalização ou a chegada ao paraíso desde sempre sonhado pela direita), considero importante a ressalva de que sim, esquerda e direita existem, porém especialmente quem assume posições de esquerda precisa ter claro o que isso significa em termos históricos e quais são as bandeiras da esquerda hoje, num mundo polarizado entre riqueza e miséria, belicistas e pacificas, consumidores e humanistas, especulação financeira e a produção de riquezas pelo trabalho... 

“E quando, finalmente, a esquerda chegou ao governo, tinha perdido a batalha das ideias.”A afirmação de Perry Anderson sintetiza o maior desafio para os que queremos superar e substituir o neoliberalismo em todas suas dimensões.

Significa que o neoliberalismo fracassou como proposta econômica, o que abre a possibilidade para que a esquerda apareça como alternativa de governo. Quando chega ao governo, tem que enfrentar toda a herança maldita do neoliberalismo: recesso, enfraquecimento do Estado, desindustrialização, fragmentação social, entre outras coisas.
Mas, além disso, tem que enfrentar o elemento de maior força do neoliberalismo, a nível de cada pais, mas também a nível internacional: sua força ideológica, a força do “modo de vida norte-americano”, que impõe sua hegemonia de forma quase inquestionada em escala global.
O estilo de consumo shopping center se globalizou de maneira aparentemente avassaladora. É uma espécie de ponta de lança do neoliberalismo, materializando seu principio geral, de que tudo é mercadoria, tudo tem preço, tudo se vende, tudo se compra. Por isso o shopping center é o exemplo mais claro do que se convencionou chamar de “não lugares”.
O shopping costuma não ter nem janela, nem relógio. Entrar em um desses espaços é se desvincular das condições de vida nas cidades como efetivamente existem, para se articular com a rede de consumo globalizada, mediante as marcas e seu estilo de consumo. Com o conjunto de “vantagens” que traz o shopping center -  proteção do mal tempo, do roubo, com lugar para estacionar, com grande quantidade de cinemas, de lugares para comer, além da diversidade de marcas, todas globalizadas – representa um instrumento poderoso de formas de vida, de sociabilidade, construídas em torno do consumo e dos consumidores.
O shopping center é a utopia neoliberal e expressa, da forma mais acabada – junto com a publicidade, as marcas, a televisão e o cinema norte-americanos, entre outros instrumentos – a hegemonia do modo de vida norteamericano. Lugar que ocupa praticamente sem questionamentos, salvo resistências do islamismo ou dos evangélicos.
A luta antineoliberal conseguiu impor consensos no plano econômico contra a centralidade do mercado, a favor da prioridade das políticas sociais, por exemplo. Mas não gerou ainda valores, formas de sociabilidade, alternativas ao neoliberalismo e a seu mundo de valores mercantilizados. É certo que há mecanismos monstruosos de promoção dos valores neoliberais, mas também é certo que não temos valores alternativos – solidários, humanistas – que apareçam como alternativas.
As políticas sociais dos governos pós-neoliberais têm um caráter solidário e humanista, mas não fomos capazes de traduzi-las em formas de sociabilidade, em valores, alternativos ao egoísmo consumista do neoliberalismo.
Não se pode simplesmente incorporar propostas anti-consumistas, em sociedade em que o acesso ao consumo é uma conquista para a grande maioria da população. Acesso que traz, junto, as vantagens do consumo e, por extensão, promove o mundo do consumo – incluído o shopping center – como um objetivo de vida. Assim, não se trata de uma batalha simples. Mas é indispensável para a construção de um mundo solidário e humanista.
Sem a critica do egoísmo consumista dominante, da falta de solidariedade – especialmente com os mais frágeis -, não conseguiremos avançar contra a forte hegemonia ideológica do neoliberalismo e ganhar a decisiva batalha das ideias, decisiva nos enfrentamentos centrais do mundo de hoje.

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