Ato político
Para que não se esqueça e nunca mais aconteça. Se é que já não estamos imersos novamente em antigos filmes de terror. Filmes da vida real, com gente de carne e osso. Filmes do qual somos protagonistas, que dóem e matam de verdade.
Tabacaria, um sinal de alerta
Filme
mostra a ascensão do nazismo na banalidade do cotidiano
O filme a
ser visto no momento se chama “Tabacaria”, dirigido por Nikolaus Leytner. Tem
os ingredientes necessários para pegar o espectador. É uma narrativa. Conta uma
história. Mais de uma. Em primeiro plano, a amizade entre Sigmund Freud e um
jovem de 17 anos, aprendiz numa loja de charutos, de jornais e de revistas para
adultos. Em pano de fundo, a ascensão do nazismo. Nas entrelinhas, a tese da
“banalidade do mal”, consagrada por Hannah Arendt. O horror cresce sem que
aparentemente ele possa se tornar algo definitivo. É o vizinho que denuncia.
Pouco a pouco, o “amor” cívico multiplica os delatores.
Em pouco
tempo, a atmosfera torna-se sufocante. O filme mistura a psicanálise emergente
com o nazismo ascendente. Entre sonho e realidade, ficção e história, sobressai
o possível: nada nos salva definitivamente do salto no escuro. Se o jovem Franz
sofre por amor, Freud, no crepúsculo da libido, goza com os charutos que fuma.
Nesse mundo de envelhecimento e aprendizagem, entre duas grandes guerras,
germina o ovo da serpente. A democracia foi usada como trampolim. Muita gente
vê possíveis paralelos com o mundo atual de ascensão da extrema direita em
muitos países. Quando o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, manda
“mirar na cabecinha” dos bandidos, não necessariamente em situação de
confronto, continuamos no Estado de Direito? Quando uma menina de oito anos é
assassinada por um representante do Estado, num disparo absurdo, ainda é a
normalidade?
Quando uma
vereadora negra e lésbica, militante de esquerda, que denunciava a violência
policial, sofre um atentado e autoridades empenham-se em impedir o
esclarecimento do caso, onde estamos? “Tabacaria” fala de amor e amizade no
exato momento em que o ódio deslancha. Freud é apresentado como o doutor que
“conserta a mente das pessoas”. Há “conserto” para a mentes das pessoas tomadas
pela vontade de oprimir, de classificar, de rotular, de catalogar e de
hierarquizar por classe, cor, ideologia, gênero, poder aquisitivo ou
moralidade?
Não é o caso
de discutir sobre a crença ingênua na cura ou no “conserto das mentes”, mas de
perguntar: estamos num período de transição, desses em que “tudo o que é sólido
desmancha no ar” sem que percebamos o tamanho da hecatombe? Por trás da fumaça
dos charutos, homens voltam a sacar seus revólveres quando ouvem a palavra
cultura, empunham seus fuzis quando escutam a expressão Direitos Humanos,
revoltam-se contra a transformação dos costumes, tentam parar o trem da
história. Não se dão conta de que o trem só para com explosão.
Quando
a justiça se torna suspeita, ainda temos certeza de alguma coisa? Quanto a
garantia das liberdades individuais se transforma em símbolo de impunidade e o
punitivismo que atropela as regras do jogo se converte em garantia de justiça,
ultrapassamos um limite sem retorno possível, salvo traumaticamente? Quando um
juiz “vaza” para ganhar a opinião pública e descarta acusações graves contra si
por terem sido vazadas, que posição ocupamos, a de cínicos, de oportunistas ou
de homens perplexos diante de uma velha tabacaria?
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