Ato político
Leitura mais que obrigatória nesses tempos de estupidez galopante, indicação de caminhos que nos levam cada vez mais ao passado e invocação de heróis que nunca passaram de vilões...
A ditadura corrupta

Um telegrama secreto de 1984, com quatro páginas, remetido pelos
espiões estadunidenses, disfarçados de burocratas, a Washington revela a
corrupção nos tempos de João Figueiredo, aquele general que preferia cheiro de
cavalo ao de gente, e enfia o todo-poderoso Delfim Neto na lama. O documento
fala em “jeitinho” brasileiro. Jeitinho de quê? De roubar. Delfim Neto é citado
como coletor de propina na condição de embaixador em Paris. O texto expunha as
entranhas da brasilidade de coturno: “Entre muitos oficiais, dos mais baixos
aos mais altos, há uma forte crença que os últimos 20 anos no poder corromperam
os militares, especialmente o alto comando e que agora é hora de deixar a
política e suas intempéries e voltar a ser soldado”. Precisa mais? A ditadura é
uma chaga que só os simplórios defendem.
Se precisar, tem. O documento avalia: “O que está claro é que a
corrupção, real ou imaginária, está erodindo a confiança dos brasileiros em seu
governo”. São 694 informes capazes de acabar com todas as ilusões sobre um
tempo de tranquilidade, segurança e honestidade. A censura impedia que os casos
mais escabrosos fossem noticiados. Havia nepotismo, propina e favorecimento
ilícito a amigos da casa. O historiador Carlos Fico já havia tratado disso com
solidez em “Como eles agiam”. Nada, porém, como uma enxurrada de dados liberada
pelos aliados de golpe para afogar narrativas ingênua ou maliciosas. Na
ditadura, roubou-se como sempre e enganou-se como nunca. Delfim Neto foi
acusado de praticar um esporte nacional: intermediar negócios entre banco
privados e estatais brasileiras.
Ela arranjou uma boa desculpa: conversa de malandros americanos
para encher relatórios e enganar os chefes nos Estados Unidos. O pessoal
ficaria de papo para o ar ao sol de Copacabana e contaria lorotas para mostrar
serviço. A operação para abafar a corrupção aconteceu também nos governos dos
ditadores gaúchos Médici e Geisel. Documentos vindos da Inglaterra entregam o
jogo. Os britânicos queriam ajudar o Brasil a pegar gatunos. A ditadura optou
pela “discrição”. Era o caso de superfaturamento numa compra de fragatas. Os
mitos sempre morrem. Eles enfrentam um roedor implacável chamado História. Nada
fica em pé. Salvo a vontade de alguns de conservar as mentiras. Ter vivido na
época de um acontecimento não quer dizer muito. Pode-se viver e não saber por
ignorância, ideologia ou desinteresse. Historiadores não sabem por ter vivido,
mas por ter pesquisado. Beneficiam-se do distanciamento para ver melhor.
Vem mais por aí. Na conta de Ernesto Geisel já está debitado:
mandou matar e abafar casos de corrupção. Eis a ditadura estraçalhada. Não a
ditadura corrompida. Ditadura corrupta.
Por Juremir Machado da Silva
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