Ato político




Diz uma canção memorável do imortal Belchior: Não cante vitória muito cedo, não/Nem leve flores para a cova do inimigo/Que as lágrimas do jovem/São fortes como um segredo/Podem fazer renascer o mal antigo.

Infelizmente, essa canção se tornou mais atual que nunca e parece ter o som de uma profecia.

O Brasil que vinha avançando, se olhando no espelho e trabalhando para resgatar dívidas sociais históricas; embalado pelas dancinhas e as manifestações histéricas de muita gente jovem e tão velha ao mesmo tempo, que não sabe como era viver no país duro, desigual e opaco dos nossos pais, acabou por abrir as comportas para que o mal antigo ressurgisse com a mesma voracidade, capacidade de manipulação e espírito excludente de outrora. 

Para não parecer que estou delirando um inventando coisas, busco amparo nas palavras do sempre atento e lúcido Juremir Machado da Silva.

Nossas anormalidades cotidianas


(Novidades brasileiras)

Michele Alves tem 23 anos. É filha de uma empregada doméstica. Ela cursou Direito em São Paulo com uma bolsa. Foi oradora dos bolsistas na formatura da turma depois de intensa negociação por espaço. Emocionou o Brasil. Contou que na já largada uma professora aconselhou os alunos a não se ampararem em resumos: “Não estudem Direito Civil por sinopse porque até a filha da minha empregada que faz Direito na ‘Uniesquina’ estuda Direito por sinopse”. O discurso da menina catalogou os conhecidos preconceitos das elites brasileiras.
Elisaldo Carlini tem 88 anos. É médico, professor da Universidade Federal de São Paulo, doutor Honoris Causa por duas instituições. Tem mais de 12 mil citações em artigos internacionais, o que é uma enormidade, e muitas condecorações por serviços à ciência, duas delas entregues no Palácio do Planalto por Fernando Henrique Cardoso. Carlini é pioneiro e especialista no uso de maconha para fins medicinais. Recentemente ele foi chamado a depor numa delegacia de polícia por apologia ao crime, ao uso de drogas ilícitas. Exclamou: “Ninguém sabia sobre mim. Eles não tinham a mínima ideia porque ninguém lê artigo científico no Brasil”. Cientista fichado por seus experimentos com maconha é mais uma jabuticaba? Só tem no Brasil?
Luís Felipe Miguel tem 50 anos. É professor de Ciência Política na Universidade de Brasília. Disponibilizou para os estudantes uma disciplina opcional abordando o impeachment de Dilma Rousseff como golpe. O Ministério da Educação decidiu interferir e questionar um princípio sagrado do mundo acadêmico: a liberdade de cátedra. A matéria não seria obrigatória. Ninguém está impedido de apresentar uma disciplina com uma perspectiva oposta do tipo “O impeachment de 2016 e o papel de Michel Temer na estabilização da democracia no Brasil”.
O comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, declarou ser fundamental, na intervenção federal no Rio de Janeiro determinada pelo presidente Michel Temer e aprovada pelo Congresso Nacional, dar aos militares “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. A reação foi imediata: “O que ele fala com todas as letras é que violações de direitos humanos vão ser cometidas e que o os militares já querem uma autoanistia prévia”, avaliou Lucas Pedretti, do Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça. Não é isso?
A velha pergunta ressoa: que país é este? Uma professora dissemina preconceito contra pobres em sala de aula; um cientista renomado é chamado a depor diante da polícia por fazer avançar o conhecimento sobre uma substância que, além de tudo, vem sendo liberada não só para uso medicinal, mas também recreativo, em lugares atrasados como a Califórnia, nos Estados Unidos; um professor é tolhido na sua liberdade de cátedra por não ter a mesma opinião do ministro da Educação sobre um acontecimento político da história recente do país; um general sugere que ações dos seus comandados sejam blindadas contra investigações futuras. Outra música se faz ouvir: “Brasil, mostra tua cara/Quero ver quem paga/Pra gente ficar assim”.

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