Ato político
Compartilho um artigo
certeiro, profundo e necessário de Ademir Furtado. Não digo mais nada, pois tal
escrito já diz tudo sobre quem é e porque tanto esperneia atualmente em nosso
país ou aqueles que mais aderem a marcha (a ré) incetada pelos que estão no topo da pirâmide social brasileira. Um esperneio com lenço, batom, roupa de marca, documento e muito mais, mas totalmente desproporcional e sem noção,
tendo em vista que a classe média nunca foi ao paraíso no Brasil e nos dias que correm nunca esteve tão longe de chegar ao inferno propalado "pelos de cima".
A classe média nunca foi ao paraíso (por Ademir
Furtado)

Verdade seja dita. É duro, para
qualquer vivente, se olhar no espelho quando não está com a cara que ele
gostaria. Pior ainda, é quando o sujeito é obrigado a ouvir uma descrição de
sua aparência que não combina com aquela imagem idealizada que ele tanto se
empenha em alimentar. Nesse caso, a melhor estratégia é desqualificar o
intrometido que se aventurou a dar palpite, e ignorar suas opiniões fora de
propósito.
Pois os indignados da vez,
aqueles que correram para vestir a carapuça, teriam poupado um pouco da bílis
se atentassem ao estrato sociológico ao qual a filósofa se referia. Aí
entenderiam que o que determina a posição social de uma pessoa não é o salário
que ela recebe no fim do mês, e sim a sua capacidade de influenciar nas tomadas
de decisões que afetam a vida de todos. E se esses medianos revoltados tivessem
o hábito de refletir sobre os problemas nacionais, aprenderiam que o maior
dilema de parte da classe média brasileira não é ser explorada e sempre pagar a
conta, e sim, a crença de que faz parte da classe dos ricos. Felizmente, essa
constatação não deve ser generalizada. Ela se aplica apenas a uma parcela da
base de apoio da pirâmide social cujos membros desprezam qualquer atividade que
não produza lucro financeiro, como as reflexões filosóficas, por exemplo. Gente
que tem no poder de consumo sua única fonte de satisfação pessoal.
Financeiramente dependente da
infraestrutura desenvolvida pela classe dominante, a classe média vive na
ilusão de que faz parte da elite, quando na verdade, vive apenas pendurada
nela. É essa condição de parasita que a torna defensora do status vigente e tão
refratária a qualquer mobilidade social vinda de baixo. A certeza de não
conseguir subir mais um degrau, somada ao medo de cair nas desgraças da
pobreza, gera na mente dessas criaturas uma necessidade premente de se afastar
das esferas subalternas.
A supervalorização da capacidade de consumo de bens
produzidos no primeiro mundo é um mecanismo utilizado para essa conquista. Mas
o argumento mais utilizado para se colocar num patamar que julga ser
inatingível pelos desfavorecidos da sorte é o arcabouço de valores morais.
Carente de qualquer refinamento intelectual, a classe média acredita que as
atitudes dos homens são determinadas exclusivamente pelas suas escolhas morais.
Um homem seria bom ou mau simplesmente porque assim ele escolheu. E o mundo
seria mais ou menos como uma casa, onde cada compartimento é o cenário de
atitudes e gestos padronizados. Essa visão de mundo não consegue conceber a
política como um jogo de interesses de grupos, onde a ação dos participantes é determinada
por pressão externa e não por convicções subjetivas. Nessa idealização da
natureza humana, tudo aparece como uma competição de virtudes naturais, e o
controle das riquezas produzidas em sociedade, fim último da atividade
política, um mero reflexo do caráter moral dos agentes da administração.
A proximidade com as esferas
superiores dá à classe média a ilusão de que foi recebida na sala de visitas.
Por isso ela precisa escamotear sua condição de servilismo confinado na
despensa e aderir ao discurso do livre arbítrio, criando para si uma imagem
idealizada de que conquistou um espaço baseada em sua capacidade. Em momento
algum ela vai conseguir enxergar que está apenas desempenhando uma função
dentro de uma organização que funciona sem o seu controle.
Por isso a classe média se sente
a merecedora por natureza de qualquer benefício vindo das camadas de cima, e
não hesita em aderir às receitas dos chefes quando o banquete é farto. Mas, nos
últimos anos, ela viu, com espanto e terror, que a administração do bolo foi
orientada para as eternas demandas dos mais necessitados, que só recebiam
atenção em épocas de eleição. Por não atinar que a sociedade é organizada na
posição piramidal, ela foi tomada de escândalo quando algumas regalias foram
jogadas no andar de baixo, sem que ela pudesse apanhar nem mesmo uma migalha.
Incapaz de entender que o fortalecimento das bases da pirâmide trariam
benefícios e mais segurança para todo mundo, ela se pôs a praguejar e acusar a
governança de demagoga. Acreditando que a classe operária finalmente tinha
chegado ao paraíso, a classe média passou a temer pela perda de sua posição de
privilegiada serviçal da classe dominante. Então os chefes da cozinha se
transformaram nos carrascos e vilões coligados com as forças do mal.
Com semelhante nível de
entendimento, cada vez que se sente prejudicada, não aparece no horizonte da
classe média nenhuma solução a não ser trocar os responsáveis pela repartição
dos pães e esperar que um novo salvador lhe traga o tão sonhado mundo novo. Afinal
de contas, para essa parte da população brasileira, o sonho máximo de redenção
é habitar os paraísos fiscais e de consumo.
Ademir Furtado é escritor, autor do romance
“Se eu olhar para trás” (Dublinense, 2011).
Comentários