Deus, Pátria, Família e Liberdade?
Quando se fala que a democracia está em risco com Bolsonaro, não se trata de um mero jogo de palavras para fustigar o adversário. Antes fosse! O fato é que o atual presidente (expulso do Exército) faz parte da corrente militar que sempre misturou o papel das Forças Armadas com política, foi favorável a tortura e a ditadura militar e só não violou as Instituições Democráticas porque o comando dessas instituições, com o apoio de uma parcela importante da sociedade, percebeu o que estava em jogo e se mobilizou contrariamente. Quando ele diz que "eu não consigo fazer tudo aquilo que eu gostaria", é sobre impor plenamente sua agenda ultra-conservadora nos costumes e o seu braço autoritário que ele está falando.
Apesar da resistência democrática, o fato é que Bolsonaro já instituiu um tipo de ditadura no Brasil que no dia 2 de outubro, infelizmente, foi em parte chancelada pelas urnas. Uma Ditadura sem tanques, sem tortura física, sem censura explícita ou formal, sem o fechamento do Congresso e do STF (como ele incitou), mas mesmo assim uma ditadura. Uma Ditadura que utiliza as regras do jogo democrático e que, por isso mesmo, pode ser mais cruel, virulenta e imperceptível. Uma ditadura na qual uma parte da sociedade escolhe livremente ser tratada “tipo bicho" ou “bucha de canhão”, como num relacionamento tóxico ou abusivo que um indivíduo vira presa ou objeto de outrem.
A história brasileira é marcada pela violência e o autoritarismo. Contudo, tal violência sempre enfrentou a resistência individual e coletiva. Ademais, já faz algumas décadas, a negação da violência e do autoritarismo virou fundamento do Estado Brasileiro e uma transgressão não somente moral, mas das leis e do regime democrático do país. Como escrevi no meu livro, "apesar das transgressões, o abandono da ética nunca se converteu no jeito ético de ser" ou como alguém escreveu: "tanta violência, mas foi maior a ternura".
Todavia, a façanha de Bolsonaro é ganhar espaço pelo estímulo à violência e a mão de ferro, sem usar a violência e o autoritarismo convencional. A façanha de Bolsonaro é que ele é um opressor escolhido e que personifica a vontade popular (ou de uma parcela expressiva, fiel e barulhenta) e ainda é visto como um representante legítimo e modelar do patriotismo, da família, da liberdade e do Cristianismo (tem gente que enxerga Cristo em Bolsonaro, pelo amor de Deus!). O mérito de Bolsonaro (se é que existe mérito nisso) é que ele se multiplica e coloniza mentes que ganham forma e se materializam em muitos que vivem ao nosso lado ou próximo de nós.
Em 2018, contrariando Ciro Gomes e outros tantos, eu já dizia que Bolsonaro não é produto apenas do anti-petismo. Com certeza ele ascendeu no bojo do anti-petismo, mas isso não explica a sua projeção e enraizamento e existem vários fatores que comprovam e demostram isso. As raízes do bolsonarismo são muito mais profundas e seus tentáculos muito mais avassaladores. O bolsonarismo é um produto do submundo que usa a tecnologia e a velocidade da informação para "ressuscitar" ideias e comportamentos do século 18, além de produzir a mentira em altíssima escala, um exército de zumbis e a alienação moderna em massa, nos moldes retratados pelo filme NÃO OLHE PARA CIMA. Uma alienação que vai muito além das relações de trabalho e ataca os valores civilizatórios e o conhecimento científico.
No começo da Pandemia, muitos imaginaram que tudo não iria passar de uma onda ou enxame, e não foi nada disso. Meu equívoco e de vários intérpretes do tecido político e social, foi pensar que Bolsonaro e o bolsonarismo também seriam como uma onda ou enxame de abelhas que vem e passa pela força do tempo, do raciocínio lógico e dos fatos. No entanto, ele não se explica pela lógica ou não cabe nos esquemas que estávamos acostumados a usar para explicar as coisas.
Bolsonaro é cria e re-criador do conservadorismo que explodiu no mundo nos últimos tempos e que ele soube interpretar e produzir na versão "tupiniquim", fazendo dele um líder popular, carismático e de massas. Um líder corrupto, que aparece como herói anti-corrupção; um homem promíscuo e que montou uma organização criminosa a partir da família, que surge como modelo de marido e de pai de família; um ser simplório e maléfico, que é visto como "temente a Deus" e servo de Cristo; um lacaio que transformou o Brasil num pária mundial que é percebido como um patriota de primeira grandeza; o pior presidente de todos os tempos, que vem jogando o país num abismo, que é visto como alguém bem intencionado e que faz mais e melhor que antes ou do que a maioria dos governantes mundiais.
No domingo, ao comparecer às urnas, vi pelo menos um agressor de mulher ostentando no peito um adesivo de Bolsonaro. Um entre os tantos "cidadãos de bem" que ele empoderou e que ocuparam a política como se fosse uma propriedade exclusiva sua e dos seus, num espaço aberto que eles podem praticar maldades em nome do bem, "da moral e dos bons costumes". O mesmo que eles fizeram com Deus, a Pátria e a Família, cujo nome é usado em vão ou como mera fachada.
Nesse segundo turno, além de dizer que a gente que voltar a comer bem e que “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte". Precisamos desconstruir os mitos e apontar as contradições de Bolsonaro e do bolsonarismo. É uma questão de literalmente salvar a pele ou destituir a ideologia de violação da individualidade e da cultura de pessoas que fazem parte dos setores majoritários da nossa sociedade (negros, indígenas, mulheres, nordestinos, pobres, LGBTS...), além de resgatar os valores civilizatórios e o papel do Brasil no mundo que estão sendo perdidos e podem custar muita coisa ou uma eternidade até serem resgatados novamente!
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