Ato político
Não se trata de ser saudosista ou contrário ao progresso. Trata-se, isso
sim, de chamar as coisas pelo nome e perceber as novas faces de uma moeda
antiga que é a desumanização ou a captura do humano pelas máquinas ou
ferramentas tecnológicas.
No mundo desumano que construímos, a criatura passou a dominar o
criador. Não exatamente por culpa da tecnologia, bem ao contrário, mas por
conta da velha sina do homem de ser lobo do homem, como ensina uma antiga e
sempre atual máxima filosófica.
Eis a questão levantada pelo escrito de Juremir Machado da Silva que
reproduzo abaixo...
Ken Loach
e a uberprecarização do trabalho
Novo filme do cineasta desnuda ideologia tecnicista

Com
o passar dos anos, não deixei de ver a maioria dos filmes de Loach. O
envelhecimento me faz admirar cada vez mais esse diretor que não se deixa
agarrar por modismos e resiste à ideologia tecnicista, que nos vende a ideia da
“uberização” do mundo como libertação de alguma coisa. Fui ver no domingo “Você
não estava aqui”, último libelo de Ken Loach contra as mentiras da tecnologia
da libertação. Sem muito spoiler dá para dizer que o filme
trata do desespero de um homem transformado pelo desemprego em “empreendedor”.
No discurso, o negócio é dele. Na prática, sem qualquer proteção trabalhista,
deve correr atrás de metas 14 horas por dia, acossado por condições terríveis
impostas pela franquia. A vida familiar do sujeito vira pó em pouquíssimo
tempo.
Ken
Loach faz como o sociólogo francês Dominique Wolton: denuncia a ideológica
tecnicista, o deslumbramento com novidades tecnológicas, às quais se atribuem
virtudes emancipatórias absurdas e impossíveis. Em lugar de flexibilização,
“uberprecarização” da vida. O capitalismo não precisa mais nem mesmo fornecer
os meios de produção. Só recolhe a sua parte dos ganhos. As ferramentas agora
pertencem ao “parceiro”. O endividamento começa com a compra ou aluguel, por
exemplo, do veículo que servirá de instrumento de trabalho. Condições são
impostas. O cliente deve pagar menos e ser impressionado com efeitos de
modernidade. O aplicativo ou franqueador nunca perde. Quem paga essa conta é o
executor do trabalho, iludido, coagido ou sem escolha.
A
escravidão hipermoderna atende pelo nome de compartilhamento. Quase sempre onde
tem “co” tem alguém marchando. Os aplicativos aplicaram, com a devida
redundância, a mentira de que não trabalhavam com transporte e convenceram
muita gente. Inventou-se a expressão fake “carona compartilhada” para um
serviço lucrativo de transporte de passageiros. Táxi sem limitação de licenças.
Como todo mundo, volta e meia, uso aplicativos. Só não me sinto mais moderno do
que ninguém por isso. Nem me constranjo ao levantar a mão e parar um táxi.
Depois de ver o filme de Ken Loach, porém, foi doloroso voltar para casa de
Uber. “Você não estava aqui” é o filme a ser visto pelos vira-latas
tecnológicos que não se importam em dar dinheiro para multinacionais, em chamar
isso de futuro e em fazer discursos sobre flexibilização.
Exagero?
Um pouco. O filme de Ken Loach, não. É de um realismo cruel. Uma crônica sobre
a destruição pela tecnologia de duras conquistas trabalhistas. Resta esperar
que a tecnologia se desenvolva tanto a ponto de deixar o capitalismo sem o seu
objeto: a escassez.
Publicado em: https://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/ken-loach-e-a-uberprecariza%C3%A7%C3%A3o-do-trabalho-1.403531
Comentários