Pensar é preciso
O governador do Rio Grande do Sul, Tarso
Genro, foi um dos poucos governantes e líderes políticos brasileiros que
colocou a cara para bater durante as manifestações de rua que sacudiram o país
em junho e julho deste ano. No calor dos protestos, promoveu reuniões,
entrevistas coletivas, audiências públicas, convidou os jovens manifestantes
para debater e ouviu diretamente, sem nenhum filtro, críticas destes à atuação
das forças de segurança e sobre outros problemas relacionados a políticas e
serviços públicos. Dentro do PT, suas iniciativas acabaram tendo projeção
nacional, diante do ruidoso silêncio que se ouvia então. Foi um dos primeiros a
defender a necessidade de uma Constituinte exclusiva, proposta que mais tarde
seria abraçada pela presidenta Dilma Rousseff e, rapidamente, bombardeada pelo
“Centrão” político que comanda o Congresso Nacional e tem crescente poder
inclusive dentro do PT.
Goste-se ou não de suas opiniões, do
governador gaúcho não poderá se dizer que pecou pela omissão. Entrou em várias
bolas divididas e segue entrando. Tarso Genro está preocupado com o que
considera ser uma interpretação ingênua por parte de setores da esquerda a
respeito das consequências políticas de todo o processo de manifestações até
aqui. O desdobramento do debate sobre a Reforma Política no Congresso, a
subordinação do PT à lógica Vaccarezza, e a tentativa de desconstituição das
conquistas sociais dos últimos 10 anos são alguns dos fatos apontados por Tarso
para analisar a conjuntura atual. “O que está ocorrendo agora não é mais um
debate sobre normas mais, ou menos, democráticas, mas um debate sobre a
correlação de forças no plano da política, para a aplicação dos princípios que
inspiraram a Constituição de 88. E quem está ganhando é o “centrão”, resume.
Tarso Genro expõe as suas preocupações a
respeito do atual momento político no país e sobre as leituras que vêm sendo
feitas sobre as manifestações de rua e suas consequências:
“A ingenuidade de uma parte da esquerda meio pollyana”
O que me pasma é uma certa ingenuidade de
uma parte da esquerda meio “pollyana” a respeito das manifestações do início de
julho, pela qual confundem as autênticas manifestações dos estudantes e de
certos novos movimento sociais – que aliás já estão na cena pública há mais de
duas décadas- com a instrumentalização que a mídia oposicionista fez do próprio
movimento, direcionando-o para dois níveis: primeiro, desgastando as funções
públicas do Estado, principalmente nas áreas da saúde e do transporte público
das grandes regiões metropolitanas e, segundo, pretendendo “apagar” da memória
popular, de forma totalitária, as grande conquistas dos governos do Presidente
Lula, seguidas pelo governo atual da Presidenta Dilma, na base do “gigante
acordou”, que tanto deleitou as classes médias mais conservadoras. Tudo isso
veio combinado com um ataque aos partidos e aos políticos em geral, que atingem
a própria democracia, que certamente na visão destes conservadores deve ser
substituída por um processo “limpo”, de manejos tecnocráticos, feito por
gerentes do capital financeiro.
A histórica campanha da grande mídia contra o Estado
Na verdade, ocorreram dois movimentos neste
processo: um movimento tipicamente eleitoreiro da grande mídia, seguido por
algumas redes sociais, preparando o ambiente eleitoral para o próximo ano, e um
autêntico movimento popular, insatisfeito pelas limitações das conquistas até
agora obtidas, cujo seguimento e aprofundamento, agora, só pode ser dado por
novos processos de participação popular direta, inclusive para reformar o
atrasado sistema político brasileiro, que já é um emperramento para que se
aprofundem as conquistas sociais até agora obtidas.
Dou o exemplo da saúde pública. Quem não
sabe que o SUS faz dezenas de milhões de atendimentos às populações mais pobres
e que é uma das grandes conquistas do povo trabalhador do país, que salva
milhões e milhões de vidas em cada ano? Pois bem, dezenas de reportagens
“contra” este sistema público foram feitas precisamente no momento em que os
planos privados, que eram apontados como a grande saída pelos neoliberais,
entraram numa crise profunda, que ficou totalmente subsumida nos noticiários,
pois o “problema”, para esta mídia, era o Estado, não o mundo privado.
Há luta ideológica sobre a saúde pública
Ambos, certamente, estavam e estão subfinanciados
e o nosso SUS precisa ser muito melhorado. Mas o que foi escondido -nestes
ataques ao sistema de saúde pública no Brasil- é que ele é, predominantemente
bom para o povo e que o privatismo não resolveu a questão nem para a classe
média que paga religiosamente os seus planos. A direita, na verdade, se propôs
a uma luta ideológica, sobre a questão da saúde no Brasil, manipulando a
informação, e a esquerda e os governos se recusaram a fazê-la. As lideranças de
esquerda em geral, com algumas exceções honrosas, manifestaram-se “encantadas”
com os movimentos, como se eles fossem uniformemente “autênticos”, não
manipulados, o que não é verdade. Basta ver que quando eles saíram da
domesticação induzida passaram a ser depreciados.
A falência do sistema político atual
O que preocupa não é mais simplesmente a
eleição do ano próximo, pois acredito que a Presidenta vai recuperar o seu
prestígio, porque o governo tem bala na agulha. O que me preocupa é o grau de
governabilidade que qualquer governo terá, no próximo período, em função da
falência do sistema político atual, que estimula as alianças fisiológicas que
tornam os governos reféns de maiorias artificiais, e, em função da incapacidade
dos estados e municípios -sejam eles quais forem- de responder às demandas
populares, por melhor saúde, melhor educação, melhor transporte, em função de
duas coisas: as desonerações que sacrificam as nossas arrecadações, através da
redução dos valores do Fundo de Participação dos Estados e dos Fundo de
Participação dos Municípios, e em função das dívidas do Estados, que não param
de crescer e impedem que se obtenha novos financiamentos para obras de
infra-estrutura, por exemplo
A tarefa estratégica para um governo de esquerda
Reagir contra a “desindustrialização” do
país e reforçar a capacidade de resposta dos Estados e Municípios
-principalmente os que governam com participação popular- no próximo período é,
na minha opinião, a principal tarefa estratégica de um governo democrático de
esquerda, pois ,como parece que não haverá reforma política nem reforma
tributária, a estabilidade política dos governos só pode ser moldada através de
“remendos” no pacto federativo, mais no âmbito da política do que âmbito de
reformas na legalidade vigente.
“Quem está ganhando é o centrão”
Que me perdoem os estetas da democracia
formal, mas o que está ocorrendo agora não é mais um debate sobre “normas”
mais, ou menos, democráticas, mas um debate sobre a correlação de forças no
plano da política, para a aplicação dos princípios que inspiraram a Constituição
de 88. E quem está ganhando é o “centrão”, ou seja, as mudanças que eles
toleram já chegaram ao seu limite. Agora, para eles, é conservar e acalmar a
plebe. Para nós deve ser mais igualdade, o que significa reforma tributária,
reforma política, democratização dos meios de comunicação e mais combate às
desigualdades sociais e regionais. Que tal encarar um imposto sobre as grandes
fortunas e um bom CPMF, para Transportes e Saúde?
(*) Publicado originalmente no Sul21 e reproduzido a partir do blog RS Urgente: http://rsurgente.opsblog.org/.
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